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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Manhã de Domingo

duas mulheres e um carrinho de neném estão sobre a pista Cláudio Coutinho, ao lado do Pão de Açúcar

 

Ao abrir a cortina de meu quarto hoje de manhã cedo, reparei que fazia um típico dia de outono, minha estação predileta no Rio de Janeiro. O céu muito límpido, um calorzinho agradável, as ruas ainda tranquilas sem aquela agitação dos domingos de praia. Espiei a rua lá embaixo, e vi ciclistas passando pela ciclovia, meus vizinhos caminhando em direção ao cachorródromo mais próximo e os porteiros conversando. Era um domingo perfeito!

 Sobre a mesa da cozinha, estendi uma toalha bordada em ponto cruz e fui colocando tudo o que de bom havia dentro da geladeira: mel, geleia, queijo, manteiga, um pão de sanduíche com as bordas já meio secas...Humm. Fiquei ali olhando para aquelas fatias de pão já meio empenadas, tentando juntar energia para ir à padaria comprar um pão fresquinho, mas a preguiça era grande demais. Isto significaria ter de tomar banho, escolher uma roupa para sair e, me dei conta ao ver minha imagem refletida na porta do micro-ondas, pentear os cabelos. Tarefas demais para uma manhã de domingo! Tive então uma ideia de gênio: fazer torradas! Solucionado o problema, voltei com energia redobrada à tarefa de passar um café bem forte e picar a banana para a minha cachorra. 

 Quando afinal tudo estava pronto para tomar o café da manhã, o telefone tocou. Era uma amiga me convidando para irmos caminhar na pista Cláudio Coutinho, que contorna a Pedra da Urca. Enquanto pensava que resposta eu daria a ela, admirei preguiçosa o céu azul sem nenhuma nuvem. “Claro!”, respondi sem muito ânimo, “Podemos nos encontrar no portão da pista daqui a uma hora e meia?”. Gessi ainda tentou negociar para mais cedo, pois estava ansiosa para sair de casa. Típica carioca, minha amiga adora ir para a rua. Só vai para casa para dormir. E como dorme pouco... “Puxa, não vai dar para chegar lá em menos de uma hora e meia, pois acabei de acordar, e ainda nem preparei meu café da manhã. Depois disso ainda tenho de levar a Suki para fazer xixi na rua”, argumentei. Desliguei o telefone e me sentei para tomar meu café da manhã com tranquilidade. Quando passei pela porta do quarto rumo ao chuveiro, vi minha cama inundada de sol e não resisti. “Só mais meia horinha de sono e depois eu tomo um banho vapt-vupt”, pensei cá com os botões do meu pijama.

 Quando cheguei ao lugar de encontro, apenas cinco minutos após a hora marcada, encontrei minha amiga toda paramentada para uma manhã olímpica: leggings, tênis de corrida, top, faixas nos punhos e no cabelo, garrafa d’água na cintura, toalha nos ombros e perfume de protetor solar. Eu vinha com meus tênis velhos, bermuda e camiseta, e muita vontade de voltar para a minha cama ensolarada. Quando nos encontramos, ela rapidamente encerrou a sessão de aquecimento e nos dirigimos à pista. 

 O caminho tem 1,25 km de extensão desde o portão de entrada até o seu final. Ele, fica a uns 10m acima do mar, tendo sido construído sobre um aterro que bordeja o morro do Pão de Açúcar. Quando se chega ao final dele, tudo o que se pode fazer é dar meia volta e retornar por onde viemos. Embora simples, dele se tem uma belíssima vista do mar e da mata que cerca a pista. Além disto, o lugar é cheio de micos que fazem a sensação entre os turistas e a garotada, além de ser vez ou outra visitado por tucanos. 

 Após 30 minutos de lenta caminhada, tínhamos percorrido os 500m iniciais, durante os quais Gessi me contou tudo sobre as histórias da sua tia e de sua sobrinha, detalhes da sua sessão semanal com o psicanalista, uma receita de bolo rápido e as últimas fofocas do trabalho. Fofocas de família costumam de aborrecer. Mas quando a família é do outro, meu cérebro simplesmente parte em divagações lá pelos anéis de plutão, desatento. Eu lutava contra isto, mas me dava conta de que as aulas de yoga não estavam fazendo muito para me manter no foco.

 Foi em uma das diversas ocasiões em que voltei o rosto em direção à praia da Urca para ver os navios petroleiros passando ao largo da costa que a vi. Ela ia à nossa frente, empurrando um carrinho de bebê, acompanhada de um homem que provavelmente era seu marido. Sua postura chamava atenção. Ela em nenhum momento se virava para olhar seu marido ou o neném que ia no carrinho a sua frente. Seu rosto fazia um movimento semicircular, se detendo na encosta do Pão de Açúcar para admirar os escaladores suspensos em suas cordas, percorria então lentamente o céu azul que começa ser invadido pelas nuvens e, finalmente, mergulhava no mar, à nossa direita.

 Passei alguns minutos observando aquela órbita semicircular percorrida pelo seu olhar, que ia e voltava pelo mesmo percurso, sem jamais passar pelo carrinho. Eu mal começava a perceber o que me intrigava naquela cena, quando o casal foi interpelado por uma conhecida, que vinha caminhando no sentido oposto. Após trocarem abraços e beijos, as duas jovens ficaram ali paradas no meio da pista conversando animadamente, enquanto o rapaz aproveitou a oportunidade para ir fotografar os micos. Nisto, reparei que a mãe soltou a empunhadura do carrinho e não se preocupou em bloquear o movimento das suas rodas, justo no trecho que é o mais perigoso, onde a pista não tem proteção lateral Como o asfalto que reveste o caminho tem um caimento em direção ao penhasco situado à sua direita, o carrinho começou lentamente a girar em direção ao mar. E foi tomando velocidade...

 Naquele exato momento, eu congelei, ao ver que a mãe do neném havia reparado no movimento do carrinho, mas não fazia nada para detê-lo. A sua amiga e a minha, inconscientes do que se passava, se aborreceram ao ver que nossa atenção não estava voltada para elas. Quando eu já estava a ponto de sair gritando e correndo feito uma doida, ela simplesmente esticou o braço e puxou o carrinho para si, e as rodas rapidamente recuaram da borda do precipício. A conversa das duas continuou tranquila, como se nada houvesse acontecido.

 Com o coração aos saltos e enojada daquela cena e das intermináveis histórias da Gessi, decretei imperiosa “Vamos embora, estou cansada”. Minha amiga, revirando os olhos, acatou minha decisão. Definitivamente, ela havia escolhido a companheira errada para passear naquela manhã de domingo.

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Tags: ímpetos assassinosacidentes infantismaternidademanhã de domingo

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