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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Joaquim e o Corvo (cap.1)

Fábula sobre a amizade de um homem e um corvo no nordeste da Alemanha durante o período de frio intenso e fome que acometeu a Europa no séc. XVIII.

homem e o corvo

Era o ano de Nosso Senhor de 1770 e, ainda que o calendário anunciasse a chegada da primavera, o frio parecia não querer ir embora. Fazia mais de 30 anos que Joaquim não via um inverno tão rigoroso por aquelas paragens. O horizonte estava permanentemente sombrio, em tons de cinza chumbo. As nevascas que mantiveram as árvores do bosque de Hohenwald cobertas por uma grossa camada branca durante quase todo o inverno ainda ocorriam eventualmente. Sem o barulho costumeiro das crianças brincando na rua e das mulheres conversando com as vizinhas, os dias eram de um silêncio sepulcral: só se ouviam os uivos dos lobos e o grasnar dos corvos. Aquilo vinha dando nos nervos de Joaquim, que passara a beber ainda mais. Agora, apenas uns copinhos de schnapps conseguiam acalmar a angústia que ele carregava no peito.

Como o sol praticamente não aparecera nos últimos tempos, as temperaturas permaneciam negativas e a terra congelada, dificultando o trabalho na lavoura. Com isso, os estoques de alimento haviam diminuído perigosamente, e os rebanhos começaram a diminuir devido à fome.

Não fossem os peixes defumados, a carne salgada e os vegetais conservados em salmoura que Helena havia preparado durante o verão, ela e seu marido teriam morrido de fome há muito tempo. Contudo, os alimentos conservados estavam terminando, e Joaquim teria de partir em longas caminhadas solitárias pelo bosque para coletar raízes, cogumelos e frutos secos para garantir sua sobrevivência. 

Ao chegar ao baixio do bosque, onde antes o rio corria cantarolante, com suas águas claras e frescas, ele encontrou apenas uma camada de gelo sob a qual a água escorria lenta e muda. Sem saber o que fazer, Joaquim deteve-se às margens do rio. Sua intenção ao sair de casa naquela manhã tinha sido retornar com um par de percas pendurado pelas guelras para Helena cozinhar. Ao fechar os olhos, ele até podia sentir o aroma do ensopado que ela preparava com a carne branca e macia deste peixe, temperado com as ervas do jardim. 

Enquanto sonhava de olhos abertos com o prato fumegante de ensopado, Joaquim viu um corvo alçar voo de uma árvore situada na outra margem, pousar à sua frente e bater repetidamente com o bico na superfície congelada do rio. O corvo deu umas bicadas no gelo, parou e olhou Joaquim atentamente antes de dar dois ou três grasnados agudos e insistentes e recomeçar a bicar o gelo.

- Por que não? – disse Joaquim rindo, enquanto revirava o saco de aniagem pendurado às suas costas, onde ele trouxera uma pequena pá, uma linha com anzol, um serrote enferrujado e seu canivete.

- Ora, vejam só! Quem diria que um homem velho como eu precisaria dos conselhos de um corvo?

E se pôs a serrar a camada de gelo, cortando um orifício redondo do tamanho de um palmo por onde jogou a linha de pesca com uma minhoca presa à ponta do anzol. Não teve de esperar muito tempo até ver que umas sombras se agitavam sob o gelo. Bastaram umas puxadas na linha e pronto, a janta estava garantida. O segundo peixe demorou um pouco mais para ser capturado. Logo depois, Joaquim começar a sua caminhada de volta para casa. Na época do frio, anoitecia muito cedo, ainda mais naquela região onde o bosque era mais denso. E ninguém em sã consciência iria querer se perder a caminho de casa carregando uns peixes frescos.

De extremo bom humor, Joaquim atravessou o bosque a passos largos e ainda fez uma breve parada para desencavar umas raízes de dente-de-leão. Após cozidas, elas seriam um acompanhamento delicioso para o ensopado.

No dia seguinte, bem cedo, ao sair de casa carregando um balde cheio de água suja para jogar fora, Helena avistou um corvo parado bem em frente ao seu jardim dando uns grasnados longos de partir o coração.

- O pobre coitado deve estar morrendo de fome, Joaquim.

Ele então lembrou-se da cena que tinha presenciado à beira do lago no dia anterior e contou à sua esposa como o corvo o tinha dado a ideia de serrar uma janela no gelo para pescar.

- Acho que vou retribuir o favor – disse Joaquim, recolhendo uns poucos restos do ensopado do dia anterior e umas migalhas de pão, que jogou no pátio. 

Após deter-se por algum tempo examinando de longe o homem que o espiava pela janela, o corvo deu alguns voos rasantes, antes de servir-se  e retornar ao bosque carregando migalhas no seu bico.

Nos dias seguintes a cena se repetiu, mas o pássaro uma vez alimentado, ao invés de partir, permanecia um bom tempo pousado sobre a cerca ali em frente. Enquanto Joaquim lhe contava histórias de sua vida e cantava antigas canções folclóricas, o corvo ouvia tudo atentamente, inclinando a cabeça ora para um lado, ora para o outro, emitindo uns piados suaves que pareciam expressar gratidão pela comida e pelo afeto. 

No inverno seguinte, o frio tornou-se ainda mais intenso e a situação do povo de Hohenwald, mais difícil. Como a terra estivera quase sempre congelada, a colheita havia sido medíocre, e a fome assombrava todos os lares. Porém nestes tempos difíceis, a amizade entre o corvo e o homem tinha se aprofundado. O corvo, a quem Joaquim dera o nome de Schlau, agora comia na sua mão e se aconchegava no calor do seu corpo. Não fosse o apego evidente demonstrado pelo corvo e as imitações perfeitas que ele fazia da risada de Joaquim, este não sabia como teria feito para se manter são.

Para ler o capítulo final deste conto, por favor clique aqui.

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Tags: corvointeligencia animalfomemini era glacial

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