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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Detox na mata

 

 


Eu passei os últimos dois anos e meio estudando os depósitos arenosos que se formaram em deltas de rio na Bacia do Amazonas Ocidental há 400 milhões de anos atrás. O nível do mar, naquele tempo, era consideravelmente mais alto que o atual. O mar recobria, inclusive, boa parte do que hoje corresponde às terras da Bolívia. Depois dessa fase, o nível global do mar desceu em torno de 200m, subiu e desceu novamente até chegar ao nível atual. Todas essas grandes mudanças, que foram controladas pelas variações climáticas na Terra, afetaram a localização dos depósitos de delta de rio ao longo do tempo. Como esses depósitos são de interesse da indústria do petróleo, consegui patrocínio para ir a campo coletar amostras, descrever os testemunhos da minha área de interesse e me manter durante a época do mestrado. 

 

 

Agora que a dissertação foi entregue e que eu já estou empregada, ainda sonho com esse período de nível do mar elevado e convulsões tectônicas que agitavam a Terra. Me pego às vezes me imaginando suspensa no ar, admirando do alto essa floresta devoniana, tão menos exuberante que a floresta amazônica atual, os grandes lagos contornados por canteiros de Cooksonia, o clima mais frio do que o atual devido à proximidade da Amazônia ao círculo polar antártico naquela época. Em meus sonhos, as placas tectônicas que formam a Terra se deslocam sem parar, o nível do mar sobe e desce de acordo com o degelo das calotas, os rios retrocedem em direção às suas cabeceiras, ou avançam imponentes em direção a regiões antes recobertas pelo mar. Me sinto prisioneira do tempo, presa numa realidade de 400 milhões de anos atrás. “Acho que preciso fazer um detox, eliminar a geologia da minha corrente sanguínea”, penso com os meus botões, enquanto olho no mapa do Brasil os vários destinos turísticos que eu poderia escolher para as minhas próximas férias. Mas tudo o que consigo pensar é em voltar para a Amazônia.

(o conto continua após a imagem abaixo)

 

 

 

Finalmente as férias chegaram. Minha mãe decidiu viajar comigo; essa será nossa primeira viagem juntas desde a minha adolescência! Já passeamos por Manaus, nos hospedamos em pousadas na selva e fizemos todos aqueles passeios que aparentemente só os estrangeiros amam: focagem de jacarés, passeios pela mata, banho de igarapé, visita às casas flutuantes de populações ribeirinhas, passeio de barco ao encontro das águas do rio Negro e rio Amazonas, pescaria de piranhas, etc. Esses passeios são muito interessantes, mas eu ainda sinto que sigo os passos de milhares de outros turistas antes de mim. Eu preferiria fazer um programa típico da população local. Partimos então para nos informar com os guias e pesquisamos na internet sobre as opções de passeios disponíveis, e acabamos decidindo por fazer uma viagem de barco regional desde Santarém até Alenquer.

 

Olhando no mapa da Amazônia, faremos um percurso de sul para norte. Iremos para noroeste pelo Rio Amazonas, passaremos pelos imensos lagos de Itarim e Pascoval e então cortaremos uma infinidade de barras arenosas atravessadas por pequenos rios até chegarmos ao igarapé de Alenquer. Serão 6 horas de viagem, chegaremos lá as 16h.

Preparamos uma mochila pequena com roupa para três dias e, finalmente, partimos. O prospecto do barco dizia que o barco tem Espaço para Redes (necessário levar sua própria rede e corda), Serviço de Lanchonete/Música ambiente, Banheiro coletivo, Área ao ar livre. E é isso mesmo: uma área aberta no convés onde você só pode sentar se tiver trazido uma rede. Mais nada. ”E eu que achava que esse negócio de se esticar na rede fosse uma opção! Mas e a gente, que não tem rede, se senta onde?”, me pergunta a minha mãe, desanimada ante a perspectiva de passar 6 horas viajando de pé. Enquanto eu procuro em vão por uma resposta, olho para um lado e para outro, e me dou conta de que nós somos as únicas de todo o barco que viajam sem rede.

 

O capitão do barco, que acompanha com curiosidade a nossa situação, se aproxima tímido de minha mãe. Ele traz nas mãos a sua rede, muito branquinha e cheirando a sabão em pó, lavada com carinho pela esposa. O capitão é um funcionário zeloso e passará as seis horas de viagem acordado, acompanhando atento o percurso do barco em que viajamos. Ele nos oferece a sua rede para descansarmos. Diz que só tem uma, infelizmente. Teremos de descansar ora uma, ora a outra. “Que amável, muito obrigada“, agradecemos sorridentes por mais essa manifestação de gentileza do povo amazonense. “Que terra maravilhosa”, minha mãe comenta sincera, com o olhar perdido voltado para o sol escaldante que viaja a pino no céu. 

 

Um outro passageiro logo se oferece para pendurar a rede com cordas de nylon na estrutura do barco e, após uma pequena discussão, minha mãe aceita ser a primeira e se acomoda na rede. Ouvimos então um barulhinho fraco, de tecido que cede, e de minha mãe, que se agita na rede procurando saber o que aconteceu. A rede, enfraquecida pelas inúmeras vezes em que foi alvejada com água sanitária, se rompe em um zás-trás. Minha mãe cai sentada no deck do navio acompanhada por uma gargalhada sonora de todos os passageiros, que logo se calam quando se dão conta da situação constrangedora em que ela está. Duas ou três pessoas mais próximas me ajudam a colocá-la de pé e averiguar se algo de mais sério aconteceu. Graças a Deus, tudo está bem, e logo aparece uma nova rede, cujo dono diz preferir viajar de pé. Minha mãe pode enfim descansar. 

 

Chegamos a Alenquer com o sol já baixo no céu. Os passageiros logo se dispersam a caminho de casa. No porto restou uma única pessoa além de nós. É uma senhora que, sentada ali pertinho, nos admira sorrindo, sem parecer ter nada de melhor para fazer do que olhar para nós. Nos aproximamos dela em busca de informações, e quando indagamos se existe um hotel nas cercanias, ela nos disse que sim. “Na cidade há apenas um hotel, muito bom, bem próximo do porto. Posso levar vocês até lá”. Ao chegarmos ao hotel, ela começa a abrir as portas dos quartos e do único banheiro que há no corredor e nos pergunta em qual deles queremos ficar. Descobrimos então que ela é a proprietária do hotel! Minha mãe, sempre tímida e pouco sociável, logo desaparece com a dona do lugar. Depois de alguma procura, eu as encontro conversando embaixo de uma árvore da praça. Três horas mais tarde, quando volto de minha caminhada pelo lugarejo, as duas continuam sentadas no mesmo lugar, conversando. “Sobre o que vocês tanto conversaram, mãe?”, pergunto a ela enquanto comemos um ensopado de peixe divino, com arroz e farofa. “Sobre tudo, e sobre nada. Sobre a vida”, ela responde enigmática.

 

No dia seguinte, quando saímos em busca de um lugar para tomar o café da manhã, somos interpeladas pelo motorista de um jipe, que para ao nosso lado e nos pergunta sem rodeios quem somos. “Turistas”, eu respondo, “e você?”. 

- Ah, eu sou o candidato a prefeito da cidade. Me chamo Zeca.

- Prazer, dr. Zeca. Nós nos chamamos Ybbi e Nair. Eu sou geóloga, e minha mãe é cirurgiã dentista. Vivemos no Rio de Janeiro.

- Mas que honra conhecer gente tão distinta da cidade grande! Vocês querem passear comigo? Eu vou passar por todos os pequenos ajuntamentos aqui do interior para fazer campanha política. É uma boa chance para vocês conhecerem o local.

- Queremos sim.

 

Embarcamos no jipe e passamos duas boas horas circulando com o candidato à prefeito por todos os bares e bolichos do interior. A cada parada, somos apresentadas aos cidadãos locais como suas distintas amigas vindas da cidade grande. Findo o périplo, o dr. Zeca se vira para nós e nos propõem visitarmos uma cachoeira situada nas proximidades. Quando chegamos ao local, estacionamos o carro em um canto da estrada e nos embrenhamos na mata. Pouco depois, chegamos a uma clareira, onde uma cachoeira se exibe em todo o seu esplendor. Suas águas escorrem mansas sobre uma escadaria de arenito, refletindo mil partículas de luz filtradas pelas cúpulas das árvores, até se juntar às águas de um lago escuro. Obra de arte da natureza! “Aposto que são depósitos deltaicos de idade Devoniana”, comento a meia voz enquanto examino os arenitos. Minha mãe assiste a cena desolada diante de mais uma das esquisitices da sua filha. Já o dr. Zeca, este irá mais tarde comentar com seus eleitores, entre um copo de cachaça e outro, sobre as bizarrices desse povo de cidade grande que viaja para um lugar tão lindo como a nossa Amazônia e continua com a cabeça ocupada por velharias.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Tags: amazôniageologiadetox mentalnatureza

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