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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Convescote de freiras

 

Ontem encontrei com amigas na Feira do Livro de Porto Alegre. Já na saída da feira, à caminho da sessão de autógrafos de uma amiga escritora, fomos surpreendidos pela pergunta do marido de uma delas: “Estão indo a um convescote de freiras?”. Por que “de freiras”, fiquei matutando com meus botões? Talvez porque o bar onde seria a noite de autógrafos se situasse na rua da República, bem ali pertinho do Mosteiro da Carmelitas, como bem lembrado por outro amigo que havia se juntado ao grupo. Ou talvez porque um grupo só de mulheres tenha um caráter um tanto assexuado para os homens. Pessoalmente, eu jamais pensaria em me referir a um grupo de homens como sendo um “convescote de padres”. Mas como eu não queria criar nenhum quiproquó com este colega, que é um cara supimpa, deixei essa conversa para lá. Ficamos um tempinho paradas na calçada, vendo os reclames da botica em frente, disciplinando nossas melenas platinadas e alisando as pregas dos nossos slacks. Aguardávamos que aparecesse uma carona, afinal o aumento de 25% na tarifa dos carros de praça que entrou em vigor na semana passada é uma agressão aos nossos bolsos de pensionistas.

 

 

 

A carona enfim chegou, e o nosso motorista era o dito marido inquisidor. Após nos acomodarmos no seu auto, reparei que ele havia trocado seus sapatos por um par de bambuchas. Sem querer admoestá-lo, mas interessada em saber a razão da troca, perguntei se seus sapatos o apertavam. “Claro que não”, respondeu ele, “a senhora não coloca bambuchas quando entra em casa, para impedir a proliferação pela casa dos germes que traz nos calçados? Pois eu, eu trato meu auto como se fosse minha casa”. Meio borocoxô ante a impertinência da resposta, e não querendo confessar que meu auto era um verdadeiro mafuá, calei-me.

 

Finalmente chegamos ao convescote. Nossa amiga escritora nos recebeu esfuziante. Muito elegante em seu vestidinho de seda negro! Nem dava para entrever suas anáguas ou o corpinho. Eu e minha patota logo nos integramos no grupo e, em pouco tempo, meu exemplar do livro já tinha os autógrafos de todos os ilustres escritores. Enquanto eu me esforçava por traduzir os garranchos da última dedicatória recebida, a garçonete, cheia de curvas e decotes, veio preencher a minha comanda. “Um hidrolitol, por favor”, solicitei prontamente. A lambisgóia ficou ali, de boca aberta e plantada à minha frente, como se avistasse um E.T. “Desculpe, não entendi”, ela falou sem jeito ao ver que eu tinha me sentido ofendida pela sua reação. “Um refrigerante. Aquele que é vermelhinho. Hoje não quero beber nada alcoólico.”

 

Às onze horas da noite, enquanto eu sorvia pelo canudinho uma coca-cola meio morna, ao invés do meu amado hidrolitol, e observava o murundu de livros sobre a mesa que aguardavam sua vez de serem autografados, nosso amigo asseado reapareceu. Meio de pilequinho devido aos 5 chopps que havia consumido, ele nos intimou alegremente: “Hora de irem para casa, mocinhas. Donzelas de respeito como vocês não devem andar pela rua às altas horas da madrugada”. Obedientes, seguimos pela rua em direção ao local onde estava estacionado seu auto. Íamos comentando sobre as vestes alinhadas e o porte digno dos distintos escritores que estavam presentes no evento. Ao chegarmos enfim ao seu auto, o sacripanta se postou de pé ao lado da porta aberta, com suas mãos postas na cintura, nos observando enquanto entrávamos uma a uma, com nossos calçados na mão, como boas moças obedientes que somos. Acomodada no banco de trás do automóvel, com meu novo livro apoiado sobre as pernas, observo feliz minhas companheiras de noitada, enquanto reflito sobre a vida: “Como é bom ter amigos que nos entendem, que falam a mesma língua que a gente”.

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Tags: idososlançamento de livrofeira do livroamizadeconvescote

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