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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Com a mente quieta e a espinha ereta

Conto distopico sobre  a vida de uma jovem do período pós-diluviano cujas pesquisas sobre o destino de sua bisavó conduzem a grandes descobertas sobre a história da civilização durante o período de crise climática que antecedeu o degelo nos polos e a subida dos mares na Terra

Narayama

Ao final do período pré-diluviano, longos períodos de seca, enchentes e incêndios de proporções colossais castigaram as plantações ao redor do planeta, condenando à fome quase toda a sua população. Quando os povos se deram conta do futuro que os aguardava, já era tarde demais para reverter a situação. Embora a morte assolasse todas as famílias, os governantes determinaram que as pessoas evitassem de todas as formas terem filhos. O nascimento de uma nova criança implicaria obrigatoriamente no sacrifício de um de seus parentes. Pela primeira vez na história, todos obedeciam sem pestanejar a um poder centralizado, e lutavam juntos contra a extinção da raça humana.

Data desta época um cartão postal endereçado à minha bisavó, que descobri abrigado entre as folhas de seu diário. Junto ao cartão havia um folheto de turismo ricamente ilustrado, impresso em papel couché brilhante, coisa rara naqueles tempos de escassez. No folheto via-se a foto de uma belíssima montanha, em cujo sopé se estendiam plantações de arroz em terraços verdejantes, que resplandeciam à luz do sol. No céu se via um bando de corvos que plainavam nos ares com suas belas asas iridescentes. Um olhar cuidadoso seria capaz de identificar uma pequena pilha de ossos no cume da montanha. Presa de um arrepio, creditei o caráter sombrio daquela imagem à estética duvidosa da civilização pré-diluviana.

No folheto vinha escrito “Você está convidado a conhecer as delícias de uma balada exótica pelas montanhas Narayama. Venha vagar entre as nuvens, como se fosse um pássaro carregado por uma brisa ligeira. A Associação Balada de Narayama lhe proporcionará um passeio em grande estilo, onde você será tratada como rainha. Seu transporte será feito em palanquim carregado por servos atenciosos. Ao chegar ao seu destino, será agraciada com uma taça de vinho envelhecido em barris de carvalho e comodamente instalada em tatames de palha ecologicamente corretos. Aproveite a oportunidade e torne esta viagem um ato inestimável de amor por sua família”.

Folheei o diário de minha bisavó em busca de um relato sobre a viagem, mas nada encontrei. Que enigma! Decidi então conversar sobre este assunto com os anciãos da comunidade. Seria uma excelente oportunidade de saber um pouco mais sobre a história de meus antepassados. Mas acabei descobrindo que o final do período pré-diluviano era considerado tabu, já que os sobreviventes não falavam daquela época.

Já que nem mesmo a tentativa que fiz de conversar com minha avó deu certo, resolvi utilizar o cogniscópio digital que está à disposição de todos no centro comunitário do vilarejo em que vivo. O pagamento por meia hora de uso do cogniscópio são 5 comprimidos de Radiontinum Protex, um preço exorbitante! Estes comprimidos vêm sendo distribuídos à população como pagamento por nosso trabalho nas Fazendas Hidropônicas desde que as águas do degelo inundaram os 490 reatores nucleares que havia ao redor do planeta. O vazamento radioativo contaminou as poucas terras emersas que restaram, colocando nossas vidas em risco. Li atentamente a etiqueta do frasco de Radiontinum: iodeto de potássio, selênio, vitamina C, vitamina E, betacaroteno, zinco, complexo B. Todos eles elementos essenciais para proteger a nossa tireoide da radiação. Quantos dias de vida iria me custar esta pesquisa?

Iniciei a pesquisa no cogniscópio afobada, afinal só tinha direito à meia hora. O dispêndio de água para refrigerar a central de computadores por este tempo de uso é de 15 litros. “Impensável”, é o que todos dizem a respeito de tal desperdício de uma commodity tão valiosa no mundo de hoje, como é a água potável. Mas a curiosidade sobre o destino de minha bisavó estava me matando.

A pesquisa sobre o termo Balada de Narayama me remeteu a um filme japonês dos anos 1980. O comentário sobre o filme dizia que Narayama era uma montanha mítica no Japão. “Que estranho”, pensei eu, pois vivemos muito longe de onde antes se situava o Japão. Então para onde teria ido minha bisavó? Minha atenção rapidamente migrou desta questão para as redes sociais da época e acabei me perdendo em uma série de assuntos irrelevantes. Quanto lixo!

Com a ajuda do buscador descobri que ao final do período pré-diluviano, quando a situação neste planeta se tornou desesperadora, surgiu uma nova religião na região onde hoje vivo. Suas crentes idolatravam um jovem de aspecto irreverente, vestido unicamente com uma túnica alva que se agitava ao vento. Na belíssima foto à minha frente, o vejo agarrado ao seu violão, encarando o fotógrafo com timidez. Tornou-se conhecido pelo codinome Lux. Naqueles tempos de crise, suas canções embalaram à exaustão uma horda de crentes que passavam os dias a meditar frente ao mar, oscilando seus corpos ao ritmo das ondas. Cientes de que nada mais podiam fazer para conter o avanço das águas, eles apenas entoavam seu mantra: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”. 

Dei um pause no vídeo em que Lux tocava sua canção, e voltei à pesquisa. No tempo que me restava, descobri que à época de Lux houve vários casos de idosos que foram convidados a viajar com a Associação Balada de Narayama e nunca mais retornaram às suas famílias. Uma lenda urbana da época afirmava que esses idosos tinham sido sacrificados para que os alimentos que restavam fossem suficientes para alimentar os mais jovens.

- Que ironia! – pensei eu, enquanto meu olhar se perdia na vastidão do mar que avistava pela janela do centro comunitário.

Embora vivêssemos cercados de água por todos os lados desde então, o suprimento de água potável era nossa maior preocupação. Três décadas haviam se passado desde que as terras imergiram, mas nós ainda sofríamos com o clima imprevisível. Até então a ciência não tinha sido capaz de achar uma solução para a escassez de água doce. De tempos em tempos a seca voltava a castigar e as culturas hidropônicas deixavam de ser suficientes para alimentar a população.

Retornei para casa deprimida com o destino de minha bisavó. Como é possível que minha família tivesse ocultado a história dela por tantos anos? Que espécie de sociedade era aquela que sacrificava a vida dos mais velhos em troca de comida? Ninguém se rebelava?

Ao me aproximar de casa, vi que a porta estava aberta, seu interior silencioso, abandonado. Sobre a mesa de jantar encontrei um cartão postal que acabara de ser entregue pelo correio. No campo do destinatário vi escrito o nome de minha avó. Minhas pernas cederam sob o peso de meu corpo quando nele vi a foto de uma montanha e um arrozal. Me sentei às pressas, ciente de que nunca mais em minha vida seria capaz de comentar esta história.

 

P.S.: A frase "Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo" corresponde ao bordão de uma canção de Walter Franco.

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Tags: Balada de Narayamacrise climáticainundaçãoWalter FrancoHidropônicopré-diluviano

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