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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Caída do ninho (O ninho do Cuco I)

 


Faz tantos anos desde a última vez em que a vi! Por que logo hoje eu fui encontrá-la por acaso enquanto passeava pela avenida Champs Elysées? Justo em um daqueles dias em que me mortifico olhando no celular os velhos retratos e as mensagens que trocamos durante o tempo que passamos juntos. Enquanto eu não apagar essas mensagens, vai ser difícil eu encerrar este capítulo da minha vida.

 

 

 Sophie, qual era mesmo a idade dela naquela época? Seis ou sete anos, talvez. A mais nova, eu me lembro bem, tinha três anos. De Chloé eu me lembro perfeitamente: seus cachos dourados, seus trejeitos, lembro de ainda sentir ela nos meus braços dias após a partida. E as perguntas que seu pai me transmitia, suas dúvidas em português, que comédia! Chloé era um caso de amor correspondido. Já a irmã mais velha era complicada. Quase não me deixava chegar perto do pai dela. Eu sei que ter ciúmes do pai é normal, mas naquele caso era um exagero.

 

 

Quando eu as conheci, elas logo se encantaram comigo, queriam minha atenção o tempo todo. Não sabiam brincar uma com a outra, eu tinha de distraí-las, criar brincadeiras, inventar histórias. Ou pelo menos me deixar pentear durante horas a fio. Antes das férias começarem, eu comprei bonecas e brinquedos para elas levarem para a praia. Mas nada disso interessava a elas, a boneca predileta era eu. Demorou algum tempo até Sophie começar a manifestar seu ciúme, acho que foi o tempo de ela se dar conta de que eu me tornara uma pessoa especial para o seu pai. Mais uma.

 

Não era apenas eu que provocava as crises de ciúme em Sophie, ela também tinha muito ciúme de seu pai com sua irmã Chloé, que era claramente a predileta do pai. Chloé nasceu sedutora, sabia como manter a atenção de todos voltada para ela. E era profundamente amorosa com a irmã. Apesar de ser a caçula, era sempre ela quem renunciava a alguma coisa se isso fosse necessário para fazer sua irmã feliz. As cenas de ciúmes pelo pai, me cortavam o coração, mas ele achava tudo isso engraçadinho. 

 

Naquela época eu era louca para ter filhos. Quando elas chegaram lá em casa, pareciam um presente dos céus. Para mim, que recebi as duas de braços abertos, foi uma decepção muito grande sentir a rejeição de Sophie. Talvez se a gente tivesse tido mais tempo juntas, as coisas tivessem se arranjado. Mas com Chloé era tudo muito diferente, ela era um grude. Se me visse triste por alguma razão, vinha se chegando de mansinho, me fazia carinho e se encostava em mim até que meu astral melhorasse.

 

Apesar de estarem em uma casa estranha e da ausência da mãe, as meninas nunca fizeram manha durante aquelas férias. Elas eram muito tranquilas. Durante o mês inteiro em que as duas ficaram lá em casa, a mãe delas não ligou uma única vez para saber como estavam. As crianças, coitadas, até que reagiram bem à essa ausência de notícias dela. Em compensação, no dia em que ela ligou para falar com as filhas, na véspera da viajem de volta, as duas caíram no choro e foi muito complicado fazer elas se acalmarem novamente. Eu nunca soube o que foi que ela disse. A impressão que eu tinha era que as meninas eram manipuladas tanto pelo pai, quanto pela mãe, conforme a necessidade de vingança ou de afirmação deles.

 

Tempos depois de elas voltarem para casa, eu soube que todos os presentes e roupas que elas tinham ganhado durante as férias tinham sido jogados fora pela mãe. Os novos pratos que elas tinham experimentado e gostado, e que o pai preparava para elas nos fins de semana na tentativa de fazer durar mais um pouquinho as boas lembranças das férias no Brasil, eram chamados de “comida de negro” pela mãe, e aos poucos deixaram de despertar prazer nas meninas. Uma mulher muito estranha, a mãe daquelas crianças.

 

Não muito tempo depois, eu soube que ela tinha recebido uma licença de afastamento na escola onde dava aula. Disseram que ela gritava e batia nos alunos. Será que ela também batia nas filhas? Acho que não. Mas a mais velha era muito medrosa... Eu ainda me lembro, como se fosse hoje, dela na praia. De pé, na beirinha do mar de uma enseada muito tranquila lá de Búzios. Praticamente não havia ondas, somente pequenas marolas. Quando as águas avançavam e molhavam os pés de Sophie, ela se debatia, os bracinhos dobrados no ar, como asas de um filhote de passarinho que mal saiu do ovo. Ela tinha medo, gritava muito, mas não saía dali por nada. Os demais banhistas olhavam para ela sem entender o que se passava, ela estava praticamente na areia! Aquela criança era uma incógnita!

 

Esporadicamente eu recebia notícias das duas através de seu pai. Foi assim que eu soube que Chloé, a filha dócil e sedutora, tinha se tornado uma rebelde, não queria mais vê-lo, nem queria estudar. Sophie, por outro lado, era aplicada e atenciosa, mas pouco calorosa. O pai parecia ter sido aos poucos expulso de suas vidas afetivas. Em uma ocasião há dois anos atrás, quando me lembrei de procurar na internet para ver se achava alguma foto atualizada delas, encontrei somente uma foto de Sophie: um retrato estilo 3x4 no seu perfil no site da faculdade. Na sua foto, ela vestia uma camiseta meio mal-ajambrada e sem charme, um lado da gola caindo pelo ombro, a alça do sutiã à mostra. O retrato de alguém a quem falta energia e deslumbramento pela vida. Treze anos tinham se passado desde aquelas férias, mas ela conservava seu ar de passarinho caído do ninho.

 

A moça que eu encontrei hoje na rua vinha mudada. O cabelo tinha um corte moderno e as roupas eram do tipo ‘mulher executiva‘. Quando eu, exultante, a chamei pelo nome, ela se virou e, nos seus olhos, eu vi um lampejo de reconhecimento. Mas ela imediatamente voltou a si da surpresa, e, me ignorando, se virou em direção à amiga, que lhe perguntava se me conhecia. “Não”, disse ela, “deve ser alguém do trabalho beneficente que meu pai realiza nos países do terceiro mundo durante as férias”. Com os olhos cheios de lágrimas, eu apressei o passo em direção à estação de metrô. Era chegada a hora de voltar para casa.

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Tags: reencontrorejeiçãofilhos de pais divorciados

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