Balada para um louco
“Eu matei por amor!” Esta foi a última coisa que o cérebro de Amelita pode processar naquela noite. Seus olhos continuavam voltados para a tela da TV, onde as notícias se sucediam sem parar, mas seus ouvidos já não discerniam nada do que os repórteres diziam sobre o julgamento mais famoso dos últimos tempos. “Que arrebatado! Seus olhos pareciam chamas que faziam arder meu coração”, disse ela baixinho, como quem se confessa ao padre. Pouco mais tarde, já deitada em sua cama, ela tinha dificuldade em cortar a torrente de pensamentos e dormir. A imagem daquele homem permanecia impressa em suas retinas. Julgado e condenado pela morte de sua mulher, ele insistia sem cessar em sua inocência. “A culpa foi dela, aquela vadia, que me traiu”, dizia ele ao repórter, já vestido com seu uniforme listrado da prisão municipal para onde tinha sido levado. Às três da madrugada, ela finalmente trocou os delírios despertos por sonhos.
Logo após dormir, ela sonhou com seu pai, do jeitinho que ele era quando Amelita ainda estava no ensino fundamental. Seu Juan Pablo era um caminhoneiro sexagenário sonhador, que um dia conheceu uma jovem fogosa pelas estradas da vida e relembrou como era estar apaixonado. Fazia tantos anos que ele não se sentia assim: nada além do que carne, ossos, entranhas e fluidos! Um mês depois de conhecer Micaela, ele abandonou sua mulher e seus filhos quase adultos e foi curtir sua nova paixão. Contudo, o idílio durou pouco e, quando Amelita fez 8 anos, Micaela partiu com Ramon, um instalador de letreiros de neon que vagava pela província de Mendoza.
Nos poucos anos que se seguiram à partida de Micaela, Amelita viu seu pai, um cantor amador apaixonado por tango, emudecer. Seus lábios só se entreabriam para aplacar a sede por vinho Malbec. Eventualmente, Amelita o convencia a cantarolar a ‘Balada para um Loco’, a única música que a fazia dormir, apaziguada ao ver os olhos de seu pai voltarem a brilhar no curto intervalo de tempo em que ele, embalado pela letra da canção, revivia seu grande amor. Naquela noite, quando Amelita sonhou com seu pai, ele cantava essa mesma música à plenos pulmões, com os olhos cheios de lágrimas. Mas em seu sonho, o rosto de seu pai era igual ao do prisioneiro que ela vira mais cedo na TV.
No dia seguinte, antes mesmo de tomar o café da manhã, Amelita se pôs a escrever uma carta para o condenado. “Hector”, era assim que ele se chamava, “sei que você vai gostar de saber que alguém é capaz de te entender. Meu pai era um homem excepcional, fiel e respeitoso que, assim como você, foi enganado por uma mulher volúvel e superficial. Esse tipo de mulher consegue deixar qualquer um louco! Mas, por favor acredite, nem todas são assim. Farei o possível para ajudar você a esquecer seu sofrimento. Sua mais fiel e devotada amiga, Amelita”.
Durante os seis anos em que Hector passou na prisão, ele e Amelita se escreveram quase todo santo dia e uma intimidade logo se estabeleceu entre eles. No mesmo dia em que Hector foi libertado, eles noivaram: “Minha liberdade foi breve”, disse ele olhando para a aliança que brilhava em seu dedo, antes de se sentar com os pés para o alto e enumerar todos os pratos da culinária mendocina com os quais ele havia sonhado na prisão. Amelita passaria os primeiros meses de casada dedicada exclusivamente a atender todos os desejos do seu amor. Ele era tão lindo! E, além disso, cantava divinamente...
Certo dia, ao abrir a porta de casa, Amelita se deparou com Ramon. Ele tinha descoberto seu endereço e trazia um pacote de cartas que sua mãe escrevera para ela, mas não tinha tido coragem de enviar enquanto estava viva. Foi assim que Amelita descobriu que nem tudo era um mar de rosas entre seus pais. Juan Pablo era um homem inseguro, ciumento e violento. De pavio curto. À medida que Amelita lia e relia estas cartas, sua visão sobre o passado mudava. Ela havia decidido que a história de sua mãe não se repetiria. Ela, Amelita, saberia construir uma relação cheia de amor e respeito, não precisaria fugir com o primeiro homem que batesse a sua porta para salvar a sua pele.
Ramon reaparecia de vez em quando e, graças às conversas com ele, Amelita ia aos poucos preenchendo as lacunas no que ela conhecia da vida de sua mãe. Essas visitas, logo se tornariam os melhores momentos de uma vida, que rapidamente havia se tornado exclusivamente dedicada a lavar, passar, limpar, fazer feira, cozinhar e ver novelas. Afora isso, Amelita não podia sair com as amigas ou se arrumar com esmero sem que Hector proferisse uma torrente de impropérios. O incessante ir e vir de Ramon, com suas latas de biscoitos, álbuns de fotografias e um rol interminável de histórias também vinha despertando nele um ódio crescente. Logo os impropérios foram substituídos por tapas e estes, por socos. Amelita, contudo, já sabia o que deveria fazer para acabar com toda esta violência.
Naquele dia, Ramon e Amelita se encontrariam em frente à banca que vendia empanadas de carne. Ela fugiria levando consigo duas mudas de roupas, e nada mais. Mas ao pular a janela de casa, ela foi surpreendida por Hector. Poucas horas mais tarde, a polícia e as camionetes das emissoras de TV cercaram o prédio, e as notícias sobre o assassinato da esposa infiel começavam a ser divulgadas. Aos poucos, formou-se um ajuntamento de mulheres na calçada que, munidas de cartazes, gritavam frases de apoio ao marido traído. “Que pouca vergonha, uma história destas. Fugir com o amante da sua mãe! Onde este mundo vai parar?”, disse uma destas mulheres ao repórter do jornal da noite, enquanto as demais esperavam aflitas pela saída do assassino. O porteiro, que assistia a toda esta cena junto ao vendedor de empanadas, murmurou desanimado "A verdadeira história está prestes a ser reescrita pelos sobreviventes".
Balada para un loco, interpretado por Amelita Baltar: https://www.youtube.com/watch?v=TK8EybuTYU4
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