Às margens do rio Jacuí
“'Ó Deus, como essa minha filha é teimosa! Faz dois dias que eu tento convencer ela a fechar a casa da ilha e voltar para Porto Alegre. As notícias que escutei na Rádio de Notícias do Senhor anunciam uma enchente como ela nunca viu antes, mas ela não me escuta. Já não me escutava quando eu estava vivo, agora então...Eu falo, e falo e ela só se agita, como se estivesse sendo atacada por um enxame de moscas. ‘Xô‘, ela me diz baixinho”.
- Mãe, o que está acontecendo? Eu não paro de pensar em ti? E no vô. O coitado deve estar se revirando no caixão.
-Para com isso, Flaviana, que eu não acredito em espíritos. Aqui na ilha está a mesma história de sempre nestes últimos dois meses. A chuva e o vento forte estão fazendo o nível do rio Jacuí subir. A água já está entrando dentro de casa novamente, mas eu não posso abandonar os cães daqui da rua, as galinhas do vizinho, e os móveis do andar térreo. Alguém tem de tomar conta, dar comida. Além disso, se a água continuar subindo, nós vamos ter de remover de novo os encanamentos da pia da cozinha e a bancada de pedra, desmontar os armários, apoiar os móveis da sala e as geladeiras sobre os bancos. Não aguento mais essa trabalheira. Já faz um tempo que a água entra em casa e desce alguns dias depois. E entra novamente, e desce. A maior parte desses dois últimos meses nós ficamos com água dentro de casa. Os jornais nem noticiam mais, deixou de ser novidade.
- Mãe, sai daí e vem para Porto Alegre. Eu estou vendo no portal de notícias que a água está subindo rápido.
- Não posso. Tem muita coisa para cuidar. A gente se fala mais tarde.
...
“Flaviana, me escuta, minha neta. A situação vai ficar difícil lá na ilha da Pintada. Só tu é capaz de convencer a tua mãe a sair de lá, então mãos à obra”.
...
- Que foi Flaviana? Se tu ficar me ligando toda hora eu não vou conseguir fazer nada.
- Mãe, eu não vou viajar enquanto eu não souber que tu tá sã e salva na tua casa em Porto Alegre, bem longe dessa enchente. Já é a maior enchente desde a catástrofe de 1941. Se depender de ajuda do prefeito ou do governador para sair daí, vocês vão todos morrer afogados, que nem a vizinha da minha amiga que mora em Muçum. Ela morreu afogada dentro de casa nessa última enchente. Já a mãe da minha amiga, que perdeu tudo o que tinha dentro de casa, recebeu um pix de R$250 do governo!
- Que absurdo! Como é que pode uma coisa dessas?
- Ela não acreditava em mudança climática, nem que a Terra é um geóide. E nunca tomou vacina na vida. Disse que o rio nunca tinha entrado na casa dela, e que não ia ser agora que ela tinha 80 anos que isso ia acontecer. Mas dessa vez, o rio Taquari subiu 24m acima do nível normal...
- Que foi, João? Ah, tá bom. Vamos preparar para sair então.
- Que foi que o pai falou, mãe?
- Que nem os jipes estão mais passando aqui em frente de casa. Se esperar mais tempo, a gente não consegue nem sair daqui.
- Então deixa tudo e vem embora.
...
- Flaviana, já estamos reunindo os cães para sair. As geladeiras já queimaram, os móveis de MDF se desmancharam. Os pratos e copos dentro do armário se quebraram, pois a corrente está muito forte. Além disso, o carro já está meio submerso, nem liga mais.
- Sai daí de caiaque e me liga de novo quando vocês chegarem a um lugar seco, que nós já estamos pegando o carro para buscar vocês.
- Vem Toco, vem com a mãe. Sai daí de cima. A gente tem de entrar no barco para sair daqui. João, vem me ajudar a tirar o Toco de cima do telhado. Não sei como ele conseguiu subir lá.
...
- Fica quieto, Toco. A viagem de barco vai ser curta. Essa noite tu vai dormir numa casa bem seca e quentinha, a mãe te promete. Fica quieto aí no fundo do caiaque, senão eu vou ter de colocar o enforcador em ti.
- Controla esses cachorros, Luíza, senão o caiaque vai virar com todos nós nessa água imunda. Além disso a corrente está fortíssima, se o caiaque virar, não sei se vou conseguir desvirar ele novamente.
- Oi mãe, como é que vocês conseguiram chegar até a estrada, carregando os cães e o caiaque?
- Tem um pessoal voluntário ajudando a população ribeirinha a evacuar da região. Eles nos rebocaram no último trecho, pois o caiaque não estava conseguindo vencer a corrente. Só jipe e reboque conseguem passar pela região alagada abaixo do viaduto. Pra variar, pouca gente do governo apareceu até agora. O prefeito só fica andando de helicóptero lá no alto. E ainda por cima pediu para a população fazer doações para o PIX do assessor dele!
- Luíza, ainda bem que teu pai não pode mais ver o que está acontecendo contigo. Se ele soubesse o que tivemos de fazer para chegar aqui sãos e salvos, ele ficaria desesperado. Ainda bem que eu consegui te convencer a sair da ilha a tempo.
“Esse João é muito inocente mesmo. Imagina se eu não ia saber do que se passa com a minha filha. E ele ainda pensa que conseguiu convencer a Luíza a sair da ilha! Ele não sabe o trabalhão que eu tive para botar um pouco de bom senso naquela cabeça dura. Agora que eu tenho acesso à Radio de Notícias do Senhor, vou ficar de olho em vocês 24 horas por dia!”.
- João, você passou a mão na minha cabeça? Eu tô com uma sensação tão estranha de que tem alguém aqui do meu lado me fazendo um cafuné...