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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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A vingança será maligna

Este é o segundo capítulo da novela "O homem que odiava as mulheres". Para ler o primeiro capítulo, por favor clique aqui.

vingativa

Enfim havia chegado o dia tão esperado. Desde que Maria Inês soubera que seu antigo chefe se aposentaria em breve, ela havia começado a arquitetar a sua vingança. Ela não se considerava uma pessoa rancorosa: frequentava a igreja toda semana, fazia caridade e se portava com humildade. Mas as grosserias que ela havia suportado e a reação inesperada de sua antiga equipe quando a história havia se tornado conhecida de todos haviam despertado nela um ódio surdo. E mudo: Maria Inês sofria em segredo.

Aliás, ela sabia que parte do que acontecera se devia ao seu eterno mutismo, à sua incapacidade de impor respeito. Nair era presa fácil. Tinha sido educada para ser boa menina, discreta e submissa, o tipo de mulher que considera os desejos dos outros mais importantes que os seus. Aquele jeito de ser estava gravado a ferro e fogo no seu código genético. 

Ao escutar os planos de vingança, a sua amiga Sílvia, que era uma grande conhecedora da alma humana, havia observado irônica: 

- Como é que você pretende ser levada à sério na sua vingança, se nunca te respeitaram antes? Na hora que você abrir a boca, eles vão dizer que você enlouqueceu, que tudo isso é coisa de mulher frustrada, falta de homem, patati patatá. Para ser levada à sério, você precisa mudar.

E assim foi feito. Nas semanas que antecederam o dia da festa de aposentadoria, Sílvia levou Maria Inês para fazer um corte de cabelo mais moderno e encobrir seus sabugos roídos por belas unhas postiças. As roupas discretas, em tons de bege e cinza que lotavam o seu armário foram todas doadas. 

- Isto é roupa para ir à Igreja, não para se vingar. Você precisa de roupas caras, de corte clássico e levemente sensual, tipo “executiva bem-sucedida”, mas com uma pitada de “amazona”.

Após um dia inteiro de peregrinação pelas butiques da rua Oscar Freire, o endereço mais chique de São Paulo, Sílvia levou Maria Inês para tomar uns drinques e relaxar no bar do restaurante Terraço Itália. Na entrada do bar, enquanto aguardavam a vez de serem conduzidas pela recepcionista até o balcão, dois homens de terno e gravata furaram a fila à frente delas como se tivessem direito à tratamento especial. 

- Vai lá e dá uma bronca neles. Mas nada de falar com voz esganiçada, viu? Considera isso como um treino para o dia D – Sílvia falou, enquanto empurrava sua amiga na direção da dupla.

- Você tá louca? Imagina se eles resolvem brigar comigo em público! Eu vou morrer de vergonha...

 Dez minutos mais tarde, as duas amigas gargalhavam, enquanto relembravam cada detalhe da cena. Após Maria Inês chamar a atenção dos dois, dizendo que eles tinham de ser educados e respeitar a ordem de chegada, eles haviam pedido mil desculpas, pretendendo que tudo não havia passado de um mal-entendido, e ainda mandaram drinques de cortesia para a mesa delas, acompanhados de um bilhete simpático. Quando o horário da happy hour já estava quase terminando, Sílvia se deu conta de que sua amiga sorria pela primeira vez em muito tempo, admirando de soslaio as suas belas unhas postiças.

Nos dias que se seguiram, Maria Inês resolveu preparar o seu discurso do dia D. Enumerou no papel todas as grosserias que seu antigo chefe havia feito a ela e à outras colegas da gerência. Tinha sido com espanto que ela havia descoberto durante os bate-papos na sala do cafezinho que não era a única vítima daquele calhorda. A quantidade de histórias semelhantes à sua era impressionante. Porém eram raras as mulheres que faziam queixa ao RH, pois as que protestavam contra este tipo de comportamento dos homens passavam a ser consideradas como difíceis, sendo colocadas para escanteio na época das promoções. 

Agora que ela já sabia o que falar, era preciso treinar o tom e ser capaz de dizer tudo em um único jorro. Teria de ser concisa e clara, ou a chance se perderia para sempre. Com a ajuda de Sílvia e de um amigo gay, que contribuíram com críticas e sugestões, ela burilou e repetiu o seu monólogo à exaustão.

O dia D finalmente havia chegado! Ela acordara mais cedo para se vestir e maquiar com esmero, e reler o texto uma vez mais antes de sair de casa. Com a porta da rua aberta, Maria Inês se olhou no espelho pela última vez e ficou fascinada com a mudança que havia se operado nela. Maquiagem e roupa impecáveis e um porte altivo lhe davam um aspecto de autoconfiança que ela nunca havia exibido antes. Enquanto fitava os próprios olhos no seu reflexo, ela se perguntou se ainda seria a mesma presa fácil do passado.

- Será que minha vida teria sido mais fácil se eu tivesse sido sempre assim?

Contudo as coisas não estavam saindo bem como ela havia planejado. O dia amanhecera chuvoso, e o trânsito estava todo engarrafado, fazendo com que o Uber que ela havia reservado no dia anterior para levá-la ao local da festa ainda não tivesse chegado. Maria Inês se impacientava com o atraso, temendo que seus planos fossem literalmente por água abaixo.

Desesperada com os imprevistos, ela decidiu procurar um taxi livre na rua. Quando finalmente um taxi parou ao seu sinal, ela viu um outro passageiro correr em direção ao carro e abrir a porta.

- Mas o que é que você pensa que está fazendo? O taxi parou para mim. Tenha a decência de aguardar a sua vez – ela falou irritada com o sujeito à sua frente, pronta a lutar com unhas e dentes para que seus planos se realizassem.

Espantado, ele ergueu o rosto e fitou aquela mulher que havia caído do espaço sideral, aos gritos.

- Vicente? – ela perguntou ao reconhecer aquele que tinha sido a grande paixão de sua juventude. 

- Maria Inês? É você mesmo? Nossa, como você está bonita. Tão diferente do que você era no tempo da faculdade... A passagem do tempo fez bem para você. – Ele comentou, enquanto olhava maravilhado para a mulher charmosa à sua frente. 

Surpreendida pelas palavras gentis dele e pelo seu olhar fascinado, ela esqueceu dos seus planos de vingança, do atraso que a atormentava e do motorista do taxi ali parado, que aguardava pacientemente que os dois decidissem qual deles seguiria viagem.

- Você está com pressa? Tem tempo para tomar um café comigo e botar a conversa em dia? Eu adoraria saber tudo o que você tem feito nestes últimos anos...

- Claro! – ela respondeu – O que você acha de tomar café lá em casa? Eu moro aqui pertinho.

E os dois seguiram com o coração aos saltos, caminhando lado a lado pelo trecho da rua iluminado pelos primeiros raios de sol que enfim atravessavam as nuvens naquela manhã. 

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Tags: vingançaassédio no trabalhoautoconfiançacrescimento pessoal

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