A torre dos ventos uivantes
Faz dois dias que sopra o Minuano fazendo com que todos prefiram ficar em casa. Na rua faz um frio desgraçado, mesmo assim, é difícil romper as tradições familiares. Hoje é sábado, dia de visitar meu avô. No meio da tarde, o centro já está morto, restam apenas umas almas penadas que caminham apressadas em direção ao seu destino, enquanto uns pares de olhos as vigiam dos cantos sombrios, esperando apenas a oportunidade de dar o bote. O centro da cidade, que um dia foi polo da atividade econômica, reino das docerias elegantes e da livraria Globo, hoje virou terra de ninguém. Parte da população não pisa mais no centro por nada desse mundo, exceto na época da Feira do Livro.
Eu e minha mãe seguimos pelo calçadão, decididas e desconfiadas dos passantes. Eu mesma já fui roubada em uma tarde de sábado como esta, a alguns anos atrás. Quando chegamos ao prédio onde mora meu vô, o porteiro nos recebe indiferente. Ele parece preferir o movimento dos dias de semana, quando centenas de pessoas circulam pelo prédio, onde a maioria dos andares é dedicada às atividades comerciais. Meu avô é um dos poucos moradores, todos eles enclausurados lá no alto da torre, acima do 27° andar.
Após a travessia arriscada e a recepção fria, enfim chegamos ao oásis que é o apartamento de meu vô. Aqui a calefação está sempre ligada durante o inverno e hoje somos recebidos por um leve tilintar que nos dá as boas-vindas. Me viro sorridente em direção ao armário de cristais, só nós dois conhecemos esse segredo. Ninguém mais parece perceber que a força do vento faz com que a estrutura do prédio vibre. Em dias como esse, até as taças de cristal vibram dentro do armário, se chocando umas contra as outras, tilintando. Sigo pisando pelos carpetes macios em direção ao escritório de meu avô. Lá está ele, inconsciente da nossa presença, examinando atentamente as cercanias com a sua luneta.
Desde que ele teve um infarto, sua vida se resume a uma meia dúzia de atividades de interesse moderado que ele realiza dentro de casa, sob o olhar vigilante de sua esposa e da empregada. Ele que antes circulava entre seus diversos trabalhos, supervisionando os empregados e se reunindo com parceiros e clientes, hoje vive submisso às regras do lar. Os amigos e parentes quase não o visitam, pois, desde os incêndios do edif. Andorinhas e das lojas Renner, tem medo das tragédias que podem ocorrer em prédios tão altos.
Após cumprimentar meu avô, deixo os adultos na saleta e vou me esconder atrás das cortinas da sala, onde admiro, sem ser perturbada, a beleza do Rio Guaíba nesta tarde ensolarada e fria. Ouço ao longe as vozes de minha mãe e minha tia bisavó, que recontam pela centésima vez as fábulas familiares. Entediada, examino a vista quando me dou conta de que a luneta de meu avô estava apontada na direção errada. O que ele observava com tanta concentração? Volto à saleta, e, como quem não quer nada, passo a mão pelo armário brilhante da vitrola, examino as fotos sob o vidro da escrivaninha e enfim me dirijo à luneta. Através da lente meio embaçada, vejo uma família inteira que desfila imperturbável e nua dentro de casa. Nesse frio! Giro espantada meu rosto em direção ao meu vô, em busca de explicação. Mas tudo o que ele faz é me encarar sorrindo, com cara de quem foi pego fazendo arte.
Retribuo o sorriso de meu avô e volto ao meu posto atrás das cortinas, porém minha paz é interrompida por sua voz que me chama de volta à saleta. Ele me aguarda com um pacote do tamanho de um radinho de pilhas nas mãos, que ele me estende com orgulho. “Fiquei sabendo que tu tiraste notas excelentes nas últimas provas. Isso aqui é uma recompensa pelo teu esforço”. Desconfiada, eu pego o embrulho e levo algum tempo até finalmente abrir o papel. Uma calculadora que faz as quatro operações! E ela é portátil! Meus colegas da escola vão morrer de inveja!
No final da tarde, me despeço de todos agarrada no meu presente, louca de medo de ser roubada no caminho até o ponto de taxi. Uma só coisa me intriga: o que tem as minhas notas assim de tão especial? Elas são sempre boas e nunca ninguém fala nada. Pela primeira vez em minha vida, tenho a sensação de que meu silêncio foi comprado...