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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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A Redescoberta do Eden - Josefa descobre que o destino dá voltas (cap. 5)

duas meninas abraçadas no centro do Rio antigo

Este é o quinto capítulo de A Redescoberta do Eden. Para ler o primeiro capítulo, clique aqui.

Josefa nasceu na fazenda de seu patrão, em Tupanciretã, do ventre de uma escrava liberta. Desde cedo ela se acostumou com a lida de casa, ajudando sua mãe no serviço doméstico. Quando aos 16 anos de idade, sua patroa lhe propôs ir juntamente com ela, seu irmão Tonico e seus filhos viver no Rio de Janeiro para ajudar no serviço de casa, ela não teve dúvida. Foi apenas no momento de se despedir do pessoal da fazenda que ela se deu conta de que talvez nunca mais voltasse a ver sua mãe, que já estava um pouco gasta devido a sua idade e ao serviço pesado. 

 A tristeza devido às despedidas e o medo de viajar acima das nuvens, mais alto que passarinho, fizeram com que Josefa chorasse ininterruptamente durante o voo e fosse incapaz de desfrutar da vista esplêndida que Ana Clara, Arthur e Bruna não cansavam de admirar pelas janelinhas do avião. Mas, quando o avião inclinou para o lado esquerdo ao aproximar-se da pista de pouso do Aeroporto Santos Dumont, e todos os passageiros começaram a gritar emocionados ao ver o Pão de Açúcar, Josefa enxugou as lágrimas e, olhando fixamente a pista de pouso logo abaixo de seus pés, agradeceu a Deus pela conquista da sua liberdade.

 Sim, porque a sensação de liberdade era o sentimento mais presente na cabeça de todos naquele momento. Eles tinham afinal se libertado do jugo de seu patrão, que gerenciava a família e os empregados da fazenda como se eles ainda estivessem no tempo da escravatura e fosse necessário aplicar castigos corporais para mantê-los na linha. Sua patroa dna. Nazinha e o seu filho Arthur eram os que mais sofriam. A patroa, coitada, passava a maior parte do tempo vestida com blusas de mangas longas e gola alta, para encobrir os roxos. Josefa gostava dela quase como de uma mãe, e sentia muito por ver esta mulher tão bonita e talentosa viver a vida como uma rosa murcha. Mas a chegada ao Rio e a descoberta de novos interesses fez com que todos se recuperassem rapidamente e voltassem a sorrir.

 Embora eles repetissem sempre que Josefa era como se fosse da família, ela não tinha um quarto, não estudava nem ganhava roupas novas como os demais. Para falar a verdade, ela nem mesmo ganhava um salário. Ela apenas recebia uma mesada para poder custear os passeios de domingo com suas novas amigas. Quanto aos estudos, Arthur felizmente descobrira que ela tinha uma mente ávida por novos conhecimentos e, em pouco tempo, fora capaz de alfabetizá-la. Agora ela podia ler as revistas O Cruzeiro e Fon-fon como todos os demais da casa. A única coisa que realmente a incomodava era o fato de que ela dormia em um coto de madeira encostado a uma das paredes da cozinha, em frente ao fogão. Sua vida parecia se restringir àquelas quatro paredes!

 Pouco após se mudarem para a casa de Santa Tereza, Josefa já tinha se tornado amiga das empregadas das casas vizinhas e, juntas, elas exploravam os bairros próximos e as rodas de samba nas noites de sábado e nas tardes de domingo. Sua melhor amiga se chamava Gracinda. Ela era uma morena da mesma idade que a sua, muito vaidosa e meio avoada. Todo dia às três da tarde, quando sua patroa saía de casa, Gracinda deixava de lado os afazeres domésticos e, ligando o rádio, se punha a cantar e dançar em frente ao espelho enquanto se admirava atentamente. “Você conhece alguém mais linda e afinada do que eu, Josefa? Você não acha que eu nasci para ser a próxima rainha do rádio?”. Josefa, que vinha todo o dia fazer uma visita à amiga neste horário, se punha a rir com gosto enquanto admirava sua amiga sambando.

 Em um sábado em que as duas saíram juntas, Gracinda pediu à Josefa que a acompanhasse a um encontro com uma quiromante famosa, que costumava publicar um anúncio nos classificados da revista O Cruzeiro. As previsões não poderiam ser melhores para Gracinda, que escutou da quiromante tudo aquilo com que sempre sonhara: ela seria muito famosa , teria uma legião de fãs e um filho ainda muito jovem. Quando as duas já estavam se preparando para sair, a quiromante disse à Josefa: “Me dê sua mão, querida, que para você eu vou ler de graça. Ah, eu vejo aqui que seu coração já tem dono e ele é um belo rapaz. Vejo você com um filho nos braços, ao lado dele. Você viverá muito e seu filho será coroado rei!”. “O quê?”, as duas gritaram em uníssono e caíram na gargalhada. A quiromante, aborrecida, encolheu os ombros e fez um sinal a elas com as mãos, indicando que era hora de partirem.

 Naquele dia, após conseguirem enfim conter a crise de riso, elas ficaram sonhando acordadas com as previsões que haviam acabado de escutar, enquanto, com o ar apatetado, bebiam uma água de côco e comiam um pastel de carne apoiadas no balcão do bar situado a duas quadras de casa. Ao fechar os olhos na hora de deitar-se àquela noite, Josefa via o rosto sorridente de Arthur, por quem nutria uma paixão que ela não ousava confessar nem a sua melhor amiga.

 Pouco tempo depois, Gracinda receberia da dona do cabaré Royal Pigalle a proposta de apresentar-se como corista. Vestida com roupas cintilantes e usando adereços com plumas na cabeça, muito maquiada e com uma desinibição e molejo cultivados ao pé do rádio de sua patroa, Gracinda logo se tornaria famosa e cortejada. Arthur não tardou a se sentir enfeitiçado por aquela bela morena que trabalhava em seu cabaré predileto e em pouco tempo tornaram-se amantes.

 Josefa descobriu sobre o namoro de Arthur e Gracinda da pior maneira possível: ao vir recolher as roupas sujas de seu jovem patrão espalhadas pelo quarto enquanto ele ainda dormia, embora fosse quase meio-dia, Josefa descobriu algumas fotos autografadas de Gracinda que ele mantinha presas em sua mão, ao lado do travesseiro. Ao sacudir seu ombro na tentativa vã de acordá-lo, para que estivesse pronto à tempo de almoçar com os demais, Arthur se virou na cama ainda meio bêbado, murmurando “Gracinda, meu amor”. Josefa, de pé no meio do quarto, paralisada como que atingida por um raio, começou a chorar baixinho ao ver suas esperanças de jovem mulher serem assim desfeitas. Mas como isto era possível, se a quiromante a tinha garantido de que ela seria mãe do filho de Arthur?

 Embora não houvesse indícios de que Arthur tivesse qualquer interesse por ela, Josefa ainda não havia perdido todas as suas esperanças. E para garantir que seu sonho se realizasse, ela seguiu o caminho adotado pelas suas demais amigas: o caminho dos terreiros de macumba. Durante os meses que se seguiram, Josefa fez trabalhos para que os amantes se separassem e ela viesse a ser mãe de seus filhos. Por conta disto, multiplicaram-se as esquinas de Santa Tereza onde havia oferendas de milho, vinho, velas e galinhas mortas, enquanto ela continuava se dedicando com afinco a lavar e passar as roupas de seu amado e a cozinhar suas comidas prediletas. No dia em que Josefa soube que Arthur e Gracinda tinham tido um filho apesar de não assumirem em público a sua relação, ela pensou que fosse enlouquecer. A partir daquele dia, ela nunca mais suportaria escutar o rufar dos tambores dos terreiros de macumba nas madrugadas de sexta-feira.

 Mas o destino dá voltas inesperadas. Poucos meses após o nascimento de seu filho Nanico, Arthur seria assassinado em uma briga de bar e Gracinda não tardaria a ir pedir ajuda a sua melhor amiga, de quem andava um pouco afastada, embora ela não entendesse a causa deste afastamento. Ao ver sua melhor amiga desesperada por não saber como conciliar a maternidade e a profissão de corista, Josefa acabou pedindo demissão a sua patroa e foi viver com Gracinda para ajudar a cuidar de seu filho. Josefa fez isso em parte para aplacar a sua dor na consciência, pois ela acreditava em seu íntimo ser culpada por todas as desgraças que tinham se abatido sobre o casal. Como uma mulher corista em geral não tem tempo ou disposição para trocar fraldas ou aturar manhas, Nanico não tinha dúvidas sobre a quem deveria chamar de mãe. Josefa se tornou uma mãe amorosa e dedicada, apesar de ser famosa pelas crises de ódio que despertava nela o toque dos tambores, provocando o terror de todos os que estivessem por perto.

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Tags: dançarina de cabaréCabaré Royal Pigalleterreiro de macumba

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