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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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A redescoberta do Éden - Arthur cai na boemia (cap. 2)

 

rapaz da boemia abraçado a uma dançarina de cabaré 

Este é o segundo capítulo da novela "A redescoberta do Éden". Para ler o capítulo anterior, clique aqui.

Dia 6: 

Entre as coisas da bisa, eu achei umas fotos de um neném moreninho e bochechudo, umas roupinhas de tricô inacabadas e uma correntinha de ouro com a medalhinha do Arcanjo Miguel. Quem será a criança? Também descobri que as roupas e objetos abandonados nos armários da casa são todos da vó e da mãe dela. Dos demais, não há nada.

 Também descobri por que a vó nunca suportou comer camarão. Ela contou no diário que quando seu pai chegava no Rio, ele dava ordens à Josefa para preparar pratos requintados com camarão, lagosta ou polvo. Mas como o dinheiro que ele dava para as compras era pouco, não havia comida suficiente para todos. Então somente ele comia estes pratos, enquanto os demais comiam o trivial arroz com feijão. Além disso, o pai não permitia que eles levantassem da mesa antes que ele terminasse de comer. Eles ficavam ali sentados sem poder fazer nada, a não ser sentir o cheiro delicioso da comida e ouvir os ruídos de contentamento que o pai fazia enquanto comia. Ao final da refeição, ele se levantava da mesa e comentava aos risos que “coisas finas não são para corpos grossos”.

 Ah, eu já ia esquecendo de te dizer que hoje bateu na porta um senhor muito gordo e de cara simpática, que disse se chamar Nanico! Ele disse que estava descendo a ladeira, indo para a Prefeitura onde ele tinha um compromisso, quando reparou que havia gente na casa. Ele perguntou meu nome e de onde eu era. Quando eu me apresentei ele ficou me olhando espantado, de boca aberta. Eu fiquei até sem graça com o jeito dele... Daí ele perguntou se poderia voltar mais tarde para conversar comigo. Neste momento, a vizinha, que estava espiando a nossa conversa por cima do muro, cumprimentou ele sorridente e perguntou “Tudo bom, Nanico? Tudo pronto para receber a coroa e a chave da cidade?”. Ele então se virou para mim e, meio sem graça, me disse que ele seria o rei Momo no carnaval deste ano.

 Quando eu vi que todos se conheciam, me senti mais segura. Disse para ele que eu estaria em casa após o almoço e que ele poderia aparecer à hora que lhe fosse conveniente. Mais tarde eu te conto como foi nossa conversa.

 Dia 7

Tu não vais acreditar no que eu tenho para te dizer!!! O Nanico foi criado pela Josefa, a criada que vivia aqui na casa com a vó Bruna, os irmãos e a mãe dela. Ele falou que quando a vó e a bisa voltaram para o Sul, a Josefa decidiu ficar. Parece que os irmãos mais velhos da vó Bruna e o seu tio também ficaram. Eles continuaram vivendo aqui na casa por mais um tempo.

 Depois que a mãe e a irmã voltaram a viver no Sul, elas nunca mais entraram em contato com a parte da família que ficou aqui no Rio. A Josefa dizia que isso devia ser coisa do velho, que tinha fama de ser muito rígido e de bater no filho, e que deve ter proibido a mulher de entrar em contato com os filhos desgarrados. Nanico também contou que o velho, apesar de ser muito rico, era muito mesquinho com a família e que ele nunca mandou um centavo para os filhos e a mulher enquanto estes viveram aqui no Rio.

 Quando se livrou do jugo paterno, o Arthur se tornou um boêmio. deixou o cabelo crescer e passou a usar roupas extravagantes. Mas antes disso ele já vivia na esbórnia. Chegava bêbado em casa todas as noites, após fazer o circuito das gafieiras e dos cabarés da Lapa. Agora eu entendo por que a vó comentou no diário dela que felizmente o irmão “ainda sabia se portar com dignidade quando vamos visitar casas de família ou encontramos jovens de nossas relações nas casas de chá da rua do Ouvidor”.

 Nanico contou que nesta época o Arthur se encantou por uma dançarina do cabaré Royal Pigalle, com quem ele acabou tendo uma filha. O bebê, que nasceu pouco antes de sua mãe e irmã terem sido arrastadas para viver novamente no Sul, era aquele bebê moreninho e bochechudo da foto guardada no armário da bisa. Esta criança, mãezinha, era a mãe do Nanico!

 Quando o velho soube o que estava acontecendo no Rio, abandonou a fazenda e veio passar o Natal de 1940 com a família. Mas como ele era muito violento e não sabia dialogar, os filhos mais velhos acabaram fugindo temporariamente de casa e se recusaram a voltar para o Sul. A mulher e sua filha caçula foram forçadas a voltar, mas não puderam levar nada junto com elas. Viajaram apenas com as roupas do corpo. O velho saiu do Rio de Janeiro limpando a poeira das solas do sapato, esfregando-as nas pedras do calçamento, como fez a rainha de Portugal quando embarcou no navio de volta para a Europa em 1821. “Nem nos sapatos quero como lembrança a terra do maldito Rio”, ele parodiou a rainha Carlota Joaquina, enquanto dirigia a sua esposa um olhar feroz.

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Tags: carlota joaquinamontmartre cariocaboemiaarcanjo miguel

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