À procura de Espinosa
É bem sabido que literatura e cinema podem ser uma força impulsionadora de turismo. Nos últimos anos, várias cidades e países tem oferecido vantagens fiscais para produtores de filmes que queiram utilizá-las como cenário de seus enredos contando com o fluxo de turistas que virá conferir as belas paisagens após terem se extasiado com o filme. O próprio Woody Allen usufruiu destas vantagens em seus filmes Midnight Paris e Vicky Cristina Barcelona, que combinam com maestria a beleza das cidades onde foram filmados com uma fotografia primorosa. Há, contudo, filmes e livros que detonam o desejo de conhecer um lugar. Este foi o caso do livro que li neste fim de semana.
O livro de que estou falando é ‘O Traidor’, de Nelson Demille e Alex Demille (pai e filho). Quem sugeriu a sua leitura foi Stephen King, que, ao final do livro ‘A Escrita’, apresenta uma lista dos cem livros com os quais se divertiu e aprendeu sobre o seu ofício. O livro dos Demille é ótimo. O enredo, o ritmo e o personagem principal são excelentes, mas a história se passa em uma Venezuela onde tudo o que resta após os governos de Chaves e Maduro é o caos, a miséria e a corrupção. Quando me dei conta do desinteresse por viajar à Venezuela que se enraizou em mim após a leitura deste livro, pude constatar a força de uma boa narrativa.
Curiosamente, a leitura de ‘O Traidor’ me trouxe à memória as sensações que os livros de Luiz Alfredo Garcia-Roza me provocaram. Sou fã deste autor, que publicou o seu primeiro romance aos 60 anos. Garcia-Roza era psicanalista e isto com certeza colaborou para que seus personagens fossem tão bem caracterizados a ponto de quase se tornarem de carne e osso. Quem leu seus romances, sabe do que estou falando: o delegado Espinosa. Personagem com molejo carioca e repleto de questões universais, você facilmente o imagina sentado à sua frente em um pé-sujo de Copacabana conversando sobre sua filosofia de vida e os casos da semana.
Devo minha paixão pelos livros de Garcia-Roza ao meu estimado colega Carlos Manoel, que me emprestou, um a um, todos os livros da sua coleção. Lembro especialmente do dia em que logo após terminar de ler um destes romances, com as cenas do livro ainda impressas na minha memória, resolvi passear pelo bairro Peixoto, onde mora Espinosa. Para estes programas de índio, e outros tantos programas exóticos que eu amo fazer, tenho meu companheiro predileto: meu ex-namorado.
Era uma manhã de domingo, e combinamos de nos encontrar em uma cafeteria charmosa de Copacabana para tomarmos juntos o café da manhã. Enquanto esperávamos pelo suco de laranja, ainda agarrada à minha bolsa, comentei com Tan como eram bons os livros de Garcia-Roza e como eu estava maravilhada com o seu personagem principal, o delegado. A delegacia de Espinosa, expliquei, ficava ali mesmo em Copacabana, a 10 minutos de caminhada. O delegado voltava todo dia à pé do trabalho para casa pela av. Nsa. Sra.de Copacabana, fazendo uma breve parada na galeria Menescal para comer uma esfiha, antes de seguir para seu apartamento no bairro Peixoto. E assim fui contando, de detalhe em detalhe, as histórias do delegado até seduzir meu ex aos encantos dos romances de Garcia-Roza.
Uma vez terminado o café da manhã, e com a bolsa já esquecida sobre uma das cadeiras sobre a calçada, à despeito dos pivetes que rondavam o local, eu finalmente pude fazer a proposta que eu tinha guardada na manga desde o dia anterior. “Vamos passear pelo bairro Peixoto e ver se localizamos alguns dos cenários do livro?”. Ele, profundo conhecedor das minhas circunvoluções cerebrais, certamente já tinha desconfiado das minhas intenções.
Atravessamos uma passagem de pedestres pixada de alto a baixo, construída nas entranhas de um dos prédios da av. Santa Clara, e chegamos a esta famosa jóia incrustada no coração de Copacabana. Olhei para um lado e para o outro, atravessei a praça de areia batida situada no coração do bairro Peixoto, e, confesso, não achei muita graça. Aos poucos, no entanto, fui me dando conta de que nas quatro ruas que formam este enclave de Copacabana praticamente só há prédios dos anos 1940 a 1950, todos baixinhos. O ambiente é de cidade pequena, tranquila. Sentamo-nos no banco da praça e me pus a admirar o seu entorno, tentando imaginar em qual prédio morava meu delegado predileto, que, nos dias de chuva, gosta de admirar de sua janela as copas das árvores da praça. Me imaginei à noite, de pé na calçada molhada, admirando o contorno dele delineado por trás da janela. As luzes de sua sala estão desligadas, e tudo o que vejo é o seu rosto, iluminado pela tênue luz da lua. Mas onde, diabos, fica afinal este prédio?
Saí de meu devaneio e afinal reparei numa senhorinha que nos fitava intrigada da janela de um apartamento térreo logo à nossa frente. Levantei-me do banco e, puxando o Tan pelo punho, disse “Vamos”. “Aonde?”, quis saber ele. “Conversar com aquela senhora”. “Bom dia! Que beleza essa região, eu não conhecia ainda o bairro Peixoto. A senhora mora aqui há muitos anos?”. “Moro, minha filha. Desde que me casei”. “E a senhora por acaso sabe onde mora o delegado Espinosa?”, perguntei. O Tan, começou a me puxar pelo braço, tentando interromper a conversa: “Ele é apenas um personagem de livro. Ele não existe, Ybbi”. “Eu sei, eu sei disso, Tan. Mas ele mora por aqui”, respondi cheia de razão, descrevendo com o braço estendido um semi-círculo, enquanto girava o corpo. Com o olhar divertido, ela acompanhava a nossa conversa e, antes que nós começássemos a discutir por motivo tão besta, ela decidiu intervir: “Vou perguntar para meu marido se ele sabe onde mora o delegado. Ele também adora os livros do Garcia-Roza”, disse ela, piscando o olho para mim, cúmplice, antes de se voltar para dentro de casa e sair em busca de seu marido. Alguns minutos mais tarde ela voltou, desanimada. “Sinto muito, ele também não sabe”. Até hoje não descobri o endereço do delegado Espinosa. Nem mesmo o autor poderá esclarecer este mistério, pois ele já morreu. Sei que seguirei atormentada pelo desejo de conhecer os cenários de seus livros.
Mas o que desperta o desejo tão forte de visitar os cenários de um romance que lemos? Será simplesmente a possibilidade de conferir se o filme que criamos em nossa mente enquanto lemos uma história se aproxima daquele imaginado pelo escritor? Todo leitor apaixonado é um cinegrafista em potencial e, a julgar pela frequência com que o público se decepciona quando assiste a um filme baseado em um livro que já leu, o mundo está cheio de cinegrafistas talentosos. Naquele dia em que passeamos pelo bairro Peixoto, fui consolada pelo meu ex da impossibilidade de avaliar meus atributos cinematográficos quando, me puxando pela mão, ele propôs “Vem, vamos procurar aquela fenda na rocha de que você me falou. Ela não fica em uma rua sem saída daqui de Copacabana, que termina em um paredão rochoso? Aquela onde o rapaz que tinha sido um pivete de rua em sua infância agora treinava escaladas e levava suas namoradas”. “Humm?”, perguntei com o ar novamente interessado, temporariamente esquecida do Espinosa lá no alto em sua janela molhada pela chuva, enquanto seguíamos à caça da fenda.
Conhecidos em vários países, os livros de Garcia-Roza, bem como o trabalho de outros escritores e músicos brasileiros com certeza influenciaram alguns turistas na escolha do seu destino de férias. Mas o desejo de vir conhecer o cenário destes livros e músicas não basta. É preciso que o governo e a iniciativa privada façam a sua parte para auxiliar o amante da cultura brasileira a compreender o contexto em que essa obra foi criada.
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