A impostora e a borboleta amarela (Viagem no Tempo, cap. 2)
Quando começo a falar da besteira que é ficar pensando no passado ao invés de focar no presente e que talvez fosse melhor anular minha viagem no tempo devido a essas exigências descabidas, eles rapidamente trazem quatro funcionárias para me dar um tratamento de rainha. Parada de pé no centro da sala, sou examinada, assepsiada, vestida com roupas da época, maquiada e perfumada com produtos semelhantes aos utilizados no início do séc. XIX. Quando enfim me admiro no espelho, fico com sérias dúvidas sobre o sucesso desta viagem. O pó de beterraba não rendeu bons resultados como blush e o cheiro desta mistura de gordura de coco, parafina e cinábrio que me passaram nos lábios é venenoso. Além disso minha pele está muito bronzeada, pois retornei a pouco de minhas férias no Caribe. Isso certamente vai ser malvisto pelas minhas antepassadas.
Embora cética, me submeto a todo o processo pacificamente, enquanto uma quinta mulher se ocupa em me ensinar regras básicas de etiqueta da época e alguns termos mais comumente empregados. Estou ficando tonta com tantos detalhes. Será que eu não deveria ter começado a me preparar mais cedo? A linguista me sugere que eu não me apresente como uma parente brasileira, mas sim como alguém vinda da Galícia, para disfarçar as diferenças culturais e a maneira de falar.
Afinal me perguntam em que ponto da cidade, e em que dia e hora quero me materializar. Forneço as coordenadas e o horário da festa de aniversário do avô de meu tataravô. Em seguida sou conduzida novamente para o corredor do shopping onde repousa imponente a máquina do tempo. Todo o panaredo das saias e anáguas que estou vestindo atrapalha um bocado quando tento me instalar no interior da máquina, mas o escudo de acrílico enfim se fecha sobre mim. Enquanto o operador do equipamento realiza os últimos ajustes, observo todo o povo que me cerca e aponta, e comenta e me posta nas redes sociais. A repulsa que sinto por toda essa atenção tira um pouco da alegria do momento, quase me esqueço de que estou prestes a encontrar o avô de meu tataravô. Quando as luzes da máquina se ligam e um zumbido ensurdecedor começa a soar, eu acordo do transe em que estava perdida e entro em pânico. Certamente havia uma razão para tantas cláusulas naquele contrato que assinei... Será que realmente é seguro?
“O que é isto? Será que me deram alguma droga psicodélica?”, comento comigo mesma enquanto vejo minhas mãos serem repetidamente atravessadas por uma borboleta amarela que voeja tranquila pela rua de terra batida onde estou. Meu corpo volta lentamente a se materializar. Enfim recolho as saias um pouco acima do chão e me ponho a caminhar em direção à casa dos meus ancestrais. O ponto de chegada que escolhi esta situado em um canto deserto da rua onde eles moram. Daqui onde estou tenho pelo menos meio quilômetro de caminhada até chegar à casa deles. Mas o que eu não havia previsto é que estes calçados apertados e essas saias longas que estou vestindo não foram feitos para andar em um caminho de terra batida, e logo estou coberta de um pó marrom da cabeça aos pés. Que estado lastimável para se chegar a uma festa onde nem mesmo se foi convidada!
A escrava que me abre a porta da casa fica intrigada com a minha aparência e parece não entender quando digo que sou uma parente distante da Galícia, e que gostaria de parabenizar meu tio pelo seu aniversário. Mas uma das senhoras da família logo se aproxima curiosa e, quando me apresento, me abraça cheia de animação e me leva para junto aos demais. Sou recebida de braços abertos e com muitos afagos nos cabelos. “Pobrezinha, toda empoeirada! Isto não é jeito de uma moça de família viajar! Ainda mais sem uma pajem!” As senhoras me cercam cheias de interesse e me abraçam com intimidade. Os homens acompanham a cena atentos, com seus charutos na mão e uma taça de vinho do porto. Me sinto radiante com o sucesso da minha viagem no tempo.
Entre taças de ovos moles e doces de pelotas, as mulheres reclamam da minha magreza. A conversa gira animada em torno da recente chegada de Auguste Saint-Hilaire à Porto Alegre. “Ah, aquele francês de hábitos estranhos e cheio de perguntas que anda por aí coletando amostras de plantas. Dizem que ele está maravilhado pela beleza da cidade.” Escuto esta conversa toda enquanto relembro o relato de viagem que ele publicou após seu retorno à França, acima de tudo da má impressão que lhe causou a sujeira das ruas e o trabalho dos escravos tigres, que percorriam a cidade de casa em casa para recolher os excrementos nos tonéis que carregavam em suas costas. Ah, os gaúchos e sua eterna mania de grandeza!
Me dou conta de que a janela de tempo da minha viagem aos anos 1816 está terminando e que, em breve, desmaterializarei novamente. É bom que me apresse em retornar à encruzilhada aonde cheguei mais cedo. Afobada, me levanto para ir à toalete e acabo deixando cair o meu smartphone, que trouxe escondido nas pregas da minha saia, na vã ilusão de tirar uma foto da cidade, da casa e das pessoas sem ser percebida.
Com o choque, a tela do meu smartphone se ilumina e todos podem ver claramente a imagem que escolhi para o meu fundo de tela: eu, vestida com um biquini minúsculo, em frente às águas azuis do mar do Caribe. As mulheres tentam entender o que estão vendo, enquanto os homens recuam chocados cobrindo os olhos. Em pouco tempo se cria uma confusão tremenda e todos partem gritando na minha direção, me chamando de impostora desavergonhada. Recolho rápido o meu smartphone e fujo correndo em direção ao ponto de partida, perseguida pelo escravo da casa, que me lança pedras, enquanto meus parentes acompanham a cena aos gritos.
Quando me dou conta já estou de volta no corredor do shopping. As pessoas me olham atônitas enquanto um grupo de empregados da Time Travel Services Inc. rapidamente me tira de cena, com a cabeça e as mãos sangrando devido às pedradas, os cabelos desgrenhados e as roupas imundas de poeira. “Vocês não queriam minhas fotos nas redes sociais?”, grito em meio a uma gargalhada histérica, “Pois fiquem à vontade! Isso é bom para que todo o mundo saiba que não se deve perder tempo sonhando com o passado. Vivam o presente!