Aventuras e Desventuras da Rota Jacobina (capitulo final)
Ao entrarmos na Galícia, se iniciaram longos períodos de chuva. Graças a esta mudança no clima, o caminho que antes era árido e pedregoso, agora se recobria de verde, era sombreado por árvores frondosas e muitos arbustos. Realmente bonito de se ver. Mas isto não bastava para elevar o moral, pois caminhar na chuva é algo penoso. Tudo vai se molhando aos poucos, por mais coberto e protegido que esteja. A roupa lavada não seca, a roupa suja se acumula. Os ânimos ficam meio sorumbáticos. Mas o que eu não esperava que acontecesse era que a bota francesa pela qual eu tinha pagado uma pequena fortuna e que deveria ser resistente à água, já no primeiro dia de chuva ficasse encharcada.
Neste trecho da caminhada, encontrávamos todas as noites no albergue um casal de franceses de cerca de 70 anos de idade. Apesar de serem muito reservados, eles logo conquistaram a simpatia de todos. Após o banho, enquanto a mulher lavava as roupas de ambos, o seu marido andava atrás dela como se fosse a sua sombra, enquanto falavam sem cessar sobre as aventuras do dia e riam de si mesmos. À noite, à hora de deitar-se, eles ocupavam um beliche. Todas as noites ela repetia religiosamente a mesma rotina: após esticar o seu saco de dormir sobre o colchão da cama de cima, ela descia os degraus, tirava a sua dentadura e a colocava em um copo com água, dava um beijo de boa noite no marido e subia novamente para dormir. Nós acompanhávamos aquela rotina enternecidos, sonhando em um dia ter um amor assim como o deles.
Nestes últimos dias, me juntei a um grupo de onze espanhóis que foram excelente companhia, sempre animados e pacientes com o meu portunhol. Chegamos juntos a Santiago de Compostela cinco dias após cruzarmos a fronteira da Galícia e logo nos dirigimos à Oficina del Peregrino para receber o documento que comprova que havíamos concluído o caminho, entregue pela igreja aos peregrinos desde o séc. XIV.
Ao meio-dia fomos à missa do peregrino, em que o padre abençoou todos nós que havíamos concluído o caminho naquele dia, citando nossos nomes um a um. Durante toda a cerimônia na Catedral de Santiago de Compostela, oito pessoas empurravam um imenso incensário de prata até que ele começasse a oscilar pendurado no teto, varrendo o ar desde o altar até a entrada da igreja, no intuito de disfarçar o ar pesado da igreja, lotada de peregrinos suados.
Finalmente era chegada a hora de festejar! Partimos para uma orgia de frutos do mar ali mesmo em Santiago, seguida da rota dos bares. No dia seguinte ao da nossa chegada a Santiago, encontrei meus amigos espanhóis vagando solitários pela cidade. Todos andávamos como almas penadas, sem saber o que fazer de nós mesmos agora que a rotina de caminhadas dos últimos trinta dias tinha acabado repentinamente. Neste dia, eu voltei à missa dos peregrinos e encontrei Rahel, que acabava de concluir o caminho. Mais adiante, sentado nos degraus de pedra sob as colunas da catedral, Frédéric exibia as solas de seus pés para um fotógrafo, que mais parecia interessado na beleza do seu rosto.
Após três dias de descanso em Santiago, em que pude encontrar todos os novos amigos que tinha feito pelo caminho, finalmente retornei para o Brasil. Minha primeira providência ao chegar ao Rio, foi ir à loja de material para trekking onde eu havia comprado o par de botas utilizado na caminhada. Como era possível que uma bota tão cara tivesse ficado encharcada no primeiro dia de chuva, perguntei ao vendedor. Ele analisou as botas com ar desconfiado. Eu realmente estava reclamando de um par de botas com que eu tinha caminhado por mais de 720 km e que agora estavam cerca de um centímetro mais gastas nas laterais das solas? Me solicitou então que eu deixasse as botas com ele. Elas seriam em seguida enviadas para a França, para serem avaliadas pelo fabricante. Um mês mais tarde, o vendedor me chamou à loja e me entregou um novo par de botas, de outro modelo. A fábrica tinha autorizado a troca.
Fui para casa contente com minhas botas novas e comigo mesma, por ser uma consumidora consciente de meus direitos. Três meses mais tarde eu revirei o armário na procura por minhas botas novas, enquanto me preparava para subir o Morro do Corcovado. Seria uma ótima oportunidade de estreá-las! Foi nesse momento, enquanto hesitava em sair com as essas botas, pois elas ainda não haviam sido amaciadas, que me lembrei do processo que eu havia aplicado às botas anteriores, usadas no caminho de Santiago. Ainda na fase de preparação física no Rio, antes de partir para a Espanha, eu havia colocado as botas em formas para calçados, para alargá-las levemente e garantir que eu pudesse usá-las com as palmilhas grossas de silicone e meias duplas. Com certeza eu tinha alargado a trama do tecido das botas, tornando-as permeáveis à chuva! Muito sem graça, calcei o novo par de botas e parti para o Corcovado. As botas podiam ser novas, mas eu era a mesma distraída de sempre. Será que após caminhar mais de 720 km e ter tantas experiências diferentes alguma coisa tinha mudado em mim?
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