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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Aventuras e Desventuras da Rota Jacobina (cap. 1)

 

 

O que me fez querer peregrinar? Não me lembro bem do motivo. Recordo apenas que eu me sentia em uma encruzilhada da vida. Eu intuía que o caminho que a minha vida seguia até então tinha chegado ao seu fim, e era hora de tomar novo rumo. Acho que eu resolvi seguir essa intuição de modo literal no dia em que encontrei uma amiga minha que voltava da Espanha, por onde tinha peregrinado por um mês. Ela irradiava energia e contava mil histórias sobre o que parecia ser uma viagem de férias pouco convencional. Seis meses mais tarde, eu seguia pelo mesmo caminho trilhado por ela.

Nesse meio tempo, li toda a bibliografia que havia sobre o caminho de Santiago, fui a palestras de peregrinos no Clube de Espanha e me preparei fisicamente. Ardia de expectativa pelo dia em que a aventura afinal começaria, sem saber que a aventura já havia começado no dia exato em eu que havia resolvido fazer o caminho. Minha primeira providência foi comprar um par de botas de caminhada e amaciá-las. Todos os domingos, eu partia da rua das Laranjeiras rumo ao Cristo Redentor, com as botas novas nos pés e a mochila cheia de pesos de chumbo, desses usados como lastro nos cintos de mergulho submarino.  Meus colegas de trabalho achavam esta preparação física muito louca, mas eu sabia que teria de carregar uma mochila pesada, pois a minha pilha de coisas indispensáveis‘ para a caminhada só fazia crescer.

 

No fim de agosto, parti sozinha. No primeiro dia de peregrinação eu já deveria fazer a travessia dos Pirineus, mas como eu achei que não teria resistência física para isso, comecei uma parada adiante. Do aeroporto, fui de taxi direto para Roncesvalles, na Espanha. Cheguei no Monastério da Real Colegiata na hora da benção dos peregrinos. Após a missa, fui providenciar o meu Passaporte dos Peregrinos, um documento que é carimbado a cada cidade da rota aonde se chega, e tomar um banho para relaxar do voo Rio-Madrid. Quando afinal cruzei a porta de um dormitório para peregrinos que datava de 1127, já era de madrugada, as luzes estavam todas apagadas e os demais peregrinos dormiam o sono dos justos. Guiada pela tênue luz da lua que entrava pela janela aberta, encontrei um pedaço de chão desocupado e, ali mesmo, abri meu saco de dormir e desmaiei de cansaço.

 

No dia seguinte, às 7h da manhã, eu colocava minha mochila de doze quilos nas costas e começava a seguir as flechas amarelas em busca de uma alma lavada pelo sacrifício. Nesses últimos dias de verão europeu, o calor era infernal. Cada vez que eu encontrava uma fonte medieval de pedra no meio do caminho, destas em que os cavalos bebem água, eu me molhava toda da cintura para cima sob o olhar curioso dos passantes. À noite, após uma caminhada que variava entre 23 e 27 km diários, restava pouca energia além da necessária para tomar um banho e jantar o menu peregrino acompanhado de uma taça de vinho. Após isso, já sentada no meu saco de dormir, eu acompanhava curiosa o trabalho de dois ou três voluntários que iam de cama em cama no dormitório, perguntando se alguém necessitava que fizessem curativo nos pés. As bolhas eram então atravessadas por finas agulhas para drenar o líquido e desinfetadas com polvedine.

 

Já no quarto dia de caminhada eu havia descoberto que não seria possível continuar carregando 12 quilos nas costas. Isso tinha se transformado em uma tortura. Após analisar cuidadosamente tudo o que eu carregava na mochila, consegui separar quatro quilos de roupas e objetos de menor necessidade. Em seguida, fui à agência de correio mais próxima e, enviei um pacote com estes objetos para uma agência de correio em Santiago de Compostela em meu nome.

 

Naquela mesma noite, o meu contentamento por reduzir o peso da mochila duraria pouco. Um dos peregrinos, um médico alemão vinte anos mais velho que eu, insistia em caminhar comigo no dia seguinte. Após passar algum tempo lutando com a insônia, resolvi que no dia seguinte eu partiria sozinha, antes que os demais se acordassem. Às 5:45h da manhã, com o céu ainda escuro, eu partia sorrateira e feliz. Logo, porém, descobri que, no desespero em escapar de ser forçada a caminhar com alguém tão esquisito, eu havia me metido em uma enrascada: naquela escuridão, eu praticamente não via onde pisava. E se algo perigoso acontecesse comigo?

 

A manhã já ia avançada quando entrei em um vilarejo onde abundavam estelas de pedra com símbolos dos templários. Meus olhos vagavam entre esses símbolos e um estábulo, que havia servido os peregrinos que outrora viajavam a cavalo, quando reparei que o médico alemão entrava na rua onde eu estava, alguns metros à minha frente. Fui salva desse encontro constrangedor por um vendedor ambulante que vendia cerejas frescas embaladas em adoráveis cestinhos de palha; há poucas coisas melhores do que comer a polpa suculenta das cerejas e cuspir o caroço no caminho, imaginando que daqui a cinco anos ele estará todo sombreado por pés de cerejeira em flor.

 

Neste mesmo dia, a palmilha de silicone maravilhosa pela qual eu havia pagado uma fortuna, e que vinha poupando os meus pés dos maus tratos do caminho, finalmente se esborrachou, e com isso apareceram as bolhas. Vários andares de bolhas, umas sobre as outras, no calcanhar do pé. Coisa nunca vista! Nesta noite experimentei pela primeira vez ser cuidada pelos voluntários. Aceitar gentileza de gente desconhecida também é um aprendizado, e eu não estava acostumada com isso. Confesso que a primeira coisa que pensei foi “o que será que ele quer em troca?”. Que feio, não é mesmo?

 

Não há nada melhor do que o sofrimento físico seguido de manifestações de solidariedade para fazer com que nossa cabeça se esqueça dos seus conflitos existenciais. Deste modo, a partir deste estágio da caminhada, eu segui tranquila, sem caraminholas na cabeça. As únicas coisas que me perturbavam eram os fios de linha que atravessavam as bolhas dos pés no intuito de ajudá-las a drenar mais rápido.

 

(fim do primeiro capítulo)

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Tags: espanhaSantiago de compostelaperegrinação

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