Assim nasceu uma influencer
Marli era uma menina que vivia no mundo da lua. Ao menos isto era o que diziam seus pais e avós. Ela era de caráter reservado, silenciosa e tímida. Dificilmente era vista cercada de amigos: preferia os gatos e os livros. Ela passara todas as tardes de sua infância sozinha, apenas na companhia da empregada doméstica, Berenice, que para ela era como uma segunda mãe.
Ninguém tinha se dado ao trabalho de socializá-la quando pequena, levando-a ao parquinho para brincar com outras crianças, pois todos estavam sempre apressados ou ocupados ao seu redor. Mal começara a andar, ela já fora enviada ao jardim de infância, mas, como lá ninguém sabia o que fazer com crianças tímidas, ela passava o dia inteiro quietinha no seu canto. A bem da verdade, as quietinhas eram consideradas uma benção dos céus pelas professoras, pois as crianças agitadas já causavam problemas suficiente.
Aos quatro anos de idade, Marli pegou uma forte pneumonia e, durante três meses, ela recebeu cuidados intensivos da sua avó. Esta, que tinha sido professora primária em sua juventude, sem saber o que fazer para distrai-la, resolveu alfabetizá-la. Um dia sua vó mandou um recado para sua mãe: “Neusa, será que você poderia vir buscar sua filha hoje à tardinha, ao invés de mandar a Berenice? Eu gostaria de te mostrar uma coisa”. Quando Neusa chegou, a vó entregou um recorte de jornal para Marli e disse “Toma. Lê” e Marli desatou a ler aos solavancos as notícias da página policial.
Foi assim que Marli acabou matriculada no colégio aos cinco anos de idade, para não desaprender a ler e a escrever. Mas como ela era a mais miudinha da turma, seus colegas não se interessavam por ela. Para ela, não havia novidade nisto, e Marli continuou quieta no seu canto, dedicada ao seu mundo interior. Embora ela tirasse nota dez em quase todas as matérias, certo dia sua mãe foi chamada à escola: “Sua filha requer atenção, ela não se integra com os colegas de turma!”. “O que esta mulher quer que eu faça? Até parece que eu não tenho mais nada com o que me preocupar!”, Neusa falava entredentes, enquanto arrastava sua filha pela mão na volta para casa.
Naquele mesmo dia, quando Marli chegou em casa, seu pai já havia bebido algumas cervejas a mais e mal conseguia controlar sua ira. Quando a mãe de Marli começou a reclamar da decoração ultrapassada da sala de estar e da necessidade de fazer uma nova cirurgia plástica nos seios, o pai se pôs a gritar e a jogar coisas na parede enquanto sua mãe reassumia o papel de pobre-esposa-sofredora-que-faz-sacrifícios-pela-sua-família e ia chorar em seu travesseiro, reclamando que se não tivesse desistido de fazer faculdade para se ocupar do lar, ela hoje seria uma profissional de sucesso no mundo corporativo, com certeza.
Sentada em sua cama com dossel, com a porta do quarto bem fechada para abafar o bate-boca, Marli se dedicava à leitura de sua mais recente paixão, o conto da Princesa Real, de Hans Christian Andersen. Nesta história ela descobrira que sua elevada sensibilidade a tudo o que lhe cercava – luzes, sons, tecidos das roupas - só poderia confirmar aquilo que seu pai sempre havia dito: ela era uma princesa! Esta noite, ela colocaria uma ervilha sob a pilha de colchoes onde dormia. Se acordasse com dor nas costas, PIMBA!, estaria provado o seu sangue real.
O tempo foi passando, e Marli foi crescendo em seu canto. Na adolescência ela até que era bonitinha, mas como sua única habilidade social se restringia a ganhar “likes” no Insta e no Tik Tok, ela preferia não sair com seus colegas. Ela dedicava todo o seu tempo livre à causa da proteção das tatuíras das areias da praia de Copacabana. “Uma causa perdida”, bradava sua mãe. “Porque ela não faz como todo mundo e vai curtir sua juventude, os garotos e os cogumelos?”, comentava dona Neusa com suas amigas quando saía para as baladas. Mas Marli era uma garota ajuizada, que não gostava de despertar a atenção dos outros sobre si.
Ao entrar na Universidade, ela havia se tornado vegana e passara a se relacionar apenas com outros veganos, para não poluir a sua aura. Era partidária da alimentação pura: sem gordura, sem açúcar, sem glúten, sem conservantes nem sal refinado. “Meu organismo é muito sensível, só suporta ingredientes de altíssima qualidade”, ela explicava a Berenice, que levava o dobro do tempo para preparar o almoço devido às exigências da sua princesa. Nestes últimos tempos, ela mal via o pai, que resolvera sair de casa e fizera uma cirurgia bariátrica. Agora, quarenta quilos mais magro, ele dedicava toda a sua energia ao seu canal no Insta, onde dava dicas aos seus doze mil seguidores de como ter sucesso na sedução.
Quanto aos demais familiares, Marli não tivera mais notícias deles após as últimas eleições. “São todos uns fachistas”, dizia ela, que só admitia dialogar com pessoas cultas, com bom senso, politicamente bem orientadas e de mente aberta, como ela. Os demais haviam sido cortados dos grupos familiares no Whatsappapós incontáveis bate-bocas. Dona Neusa, que tinha aparecido em todos os canais de televisão ao ser espancada por um date que ela tinha acabado de conhecer no Tinder, agora fazia apenas programas caseiros com suas amigas.
Nos dias em que as reuniões de mamis e suas amigas eram em sua casa, dona Neusa frequentemente chamava Marli para dar um pulinho na sala de estar. “Diante de vocês está o futuro da humanidade, para quem eu dei tudo o que tinha de melhor. Que outra geração no passado foi tão inclusiva a ponto de se preocupar com a preservação das tatuíras?”, dizia ela orgulhosa para suas amigas, abraçada a Marli. Naquela mesma noite, Marli ganharia novas seguidoras para sua causa. Nascia uma nova influencer.
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