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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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As Devas da Sanga

uma senhora esta agachada atras de uns arbustos, espiando um grupo de fadas dançando no jardim

 

Eram três horas da manhã, a chamada “hora do diabo”, a hora em que os espíritos se aproximam dos mortais à procura de contato e aconchego, implorando pelo perdão de seus pecados cometidos em vidas passadas.

 Nesta madrugada de domingo, não foram meus entes queridos que vieram me despertar, mas sim minha cachorra, que estava com sua barriga cheia de gases que lhe causavam espasmos de dor. Com seu focinho úmido encostado em minha mão, e seus olhos fixos nos meus, ela aguardava pacientemente que eu entendesse o recado: ela queria caminhar na rua. Pesei os prós e os contras de me fazer de desentendida e voltar a dormir, mas acabei cedendo ao apelo dela. Vesti umas roupas sobre o pijama e calcei meus tênis antes de descermos para o jardim do meu condomínio. Como onde eu moro é proibido circular com os animais, nós fomos direto para o cantinho mais distante do terreno, lá onde o segurança provavelmente não nos incomodaria, pois no local há poucas câmeras de vigilância.

 A região onde eu moro era uma extensa planície coberta por uma cultura de agriões e criação de gado leiteiro até poucas décadas atrás. Estas terras eram atravessadas por um arroio, em cujo trecho mais profundo, lá onde as águas corriam mesmo nos tempos de seca, havia uma sanga de mato alto e sombreado em que o povo se banhava nos dias de verão. Quase nada restou do encanto original deste local, que hoje corresponde a uma extremidade do terreno do meu condomínio. Apenas a umidade insiste em atravessar o aterro jogado no local, mantendo o vigor das plantas ornamentais para lá transplantadas.

 Pois foi neste cantinho de vegetação densa do terreno que eu e Suki fomos nos esconder das câmeras. Quando minha cachorra chegou ao local, ela ficou extasiada com os odores pungentes carregados pela brisa da madrugada e acabou se esquecendo dos seus tormentos. De repente, ela passou a ganir baixinho, o focinho se agitando, enlouquecido. Um súbito puxão da guia fez com que eu perdesse o equilíbrio e caísse de joelhos na brita fina. Enquanto eu me erguia novamente e verificava o estrago em meus joelhos escalavrados, me dei conta de que não estávamos sós. Sentada em um cantinho, com as costas apoiadas contra o muro, estava uma senhorinha que repetia assustada “Tira ela daqui. Tira!”

 Puxei a guia para afastar minha cachorra de seus pés enquanto detia meus olhos com calma sobre uma mulher baixinha, de cabelos muito brancos, que mal conseguia erguer a cabeça. Esta parecia deitar-se sobre o ombro, conferindo a ela o ar permanente de quem investiga um mistério. Estava vestida com uma camisola de popeline floreado, o peito cheio de rendinhas, seus pés metidos em grossas meias de lã e pantufas de oncinha.

 “A senhora se machucou?”, perguntei para ela enquanto a ajudava a se reerguer e sacudia a terra que havia se grudado em sua camisola. O que a senhora está fazendo aqui? Está perdida?”, insisti.

“Não, não, minha filha. Estou procurando as Devas da sanga”, ela me respondeu.

“Quem? 

“As Devas da sanga”, repetiu ela, exasperada, com os olhos arregalados e as mãos se agitando em compasso com a fala, como quem explica o óbvio a uma criança.

“Não conheço elas... Quem são?”

“Tsk”, ela me respondeu, fazendo um muxoxo de desprezo, enquanto me virava as costas e voltava novamente sua atenção para os arbustos.

“Qual é o seu nome?”, perguntei com a fala macia, tentando uma nova abordagem.

“Tália”, me disse ela, sem se voltar.

“Que nome bonito! A senhora sabia que Tália significa ‘a exuberância da seiva’? Mas me diga, quem são as Devas? A senhora ainda não me falou das delas.”

“As Devas, moça, são seres luminosos de grande inteligência, que cuidam das plantas. Eu vim pedir ajuda a elas. Gostaria que elas me devolvessem o poder de cuidar das plantas. Desde que me trouxeram lá de Bagé para morar aqui na casa de minha sobrinha, eu perdi a capacidade de tratar das plantas. Antes, qualquer coisa que eu plantasse crescia tanto que virava um mato. Todo mundo se encantava com a beleza do meu jardim. Mas desde que vim morar na cidade grande, todas as minhas plantas morrem secas”, me disse ela, com lágrimas nos olhos.

“Vamos dona Tália, já é tarde para a senhora estar acordada. Eu vou lhe levar para casa, senão a senhora vai acabar pegando um resfriado, vestida assim com essa camisola fininha”

“Não, não, não!”, ela começou a se agitar novamente, sacudindo as mãos e a cabeça, enquanto voltava a se embrenhar nos arbustos.

 Acabei desistindo de convencê-la e decidi voltar para a minha cama. Afinal sobravam ainda quatro horas de sono antes da hora de despertar. Quando me virei em direção à portaria do meu prédio, vi o segurança, que acompanhava a cena em silêncio, curioso. “Não adianta insistir, dona Ybi. Deixa ela em paz. Ela fica feliz ali naquele cantinho cheio de plantas”, me disse ele, que já estava acostumada aos devaneios da senhora.

 Às 7:30h, quando os sinos tocaram chamando o povo para a missa, eu me levantei e abri as janelas. Lá do alto eu a vi, caminhando de volta para casa, com sua camisola suja de terra na altura dos joelhos e suas mãos reunidas em concha, carregando uma mudinha. Ela vinha com o ar embevecido de quem assistiu uma cena de beleza transcendental.

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Tags: dedo verdedevasespíritos da naturezafadas

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