Loading...

Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

Blog

Veja nossas postagens

As confusões em que me meti quando me deparei com diferentes culturas e sua forma de lidar com o corpo

 

Duas muçulmanas vestidas de burka em um banho de mar
 

A gente no geral toma por regra os hábitos daqueles que nos cercam. Acha que tudo que difere da nossa cultura é esquisito, coisa de louco. Estranha os índios, estranha os muçulmanos, os asiáticos. No pelotão da vida, somente quem marcha com o pé certo somos nós. Todos os demais marcham com o pé errado. 


Mas o que eu não esperava quando minha companhia me mandou fazer um ano de aperfeiçoamento profissional na França, era estranhar os costumes franceses. Especialmente no que diz respeito à relação deles com o corpo. Logo nos primeiros dias em que cheguei na França, eu levei um susto. Me avisaram no centro de pesquisa onde eu estava trabalhando de que eu teria de fazer um exame médico. No setor médico, após entregar a amostra de urina para exame toxicológico, me pediram para entrar em um cubículo de 1m x 1m, com duas portas, tirar toda a roupa, exceto lingerie, e ali apertar uma campainha e aguardar ser chamada pelo médico. Tirar toda a roupa para encontrar alguém que eu nunca vi na vida? Eu não sou assim tão desinibida! Quando a porta se abriu, a médica me olhou e começou a rir. Achou engraçado eu ter permanecido de meia-calça. “É o frio”, disfarcei.


Uma semana mais tarde, tive uma crise de dor na coluna após carregar e montar sozinha meus novos móveis que comprei na IKEA. Me sugeriram que marcasse uma consulta com um cinesioterapeuta. No dia marcado, cheguei às 8h da manhã no endereço fornecido, mas tive de dar várias voltas em torno do prédio procurando a porta do consultório até, finalmente, resolver anunciar minha chegada por um interfone. Com um estalo uma porta se abriu, dando passagem a uma escada que conduzia ao porão do prédio. “Desça por favor”, disse uma voz. Desconfiada, desci uns poucos degraus e, logo

 ao entrar em uma sala ampla com uns poucos apetrechos de fisioterapeuta, ouvi a frase que agora já se tornava usual para mim: “tira toda a roupa” Mas o que eu não esperava era o que ela disse logo a seguir: "e te pendura ali naquela argola pendente do teto”. Nua, e pendurada no teto de um porão estranho? Meu Deus, e se for uma psicopata? Sem coragem de me opor às suas instruções, fiz tudo direitinho, tremendo que nem vara verde. “Tá frio?”, ela perguntou inconsciente do meu mal estar. Embora a recepção tenha sido inusitada, o tratamento foi super eficaz e logo eu estava tranquila e sem dor.


Neste ano em que morei fora, embora tenha sido sempre uma adepta apaixonada das longas caminhadas pelo campo, jamais tive coragem de participar das randonnés promovidas no trabalho como forma de integração entre os colegas. Logo no início, meus colegas brasileiros me avisaram de que, ao final das caminhadas, o pessoal se jogava no rio para lavar o suor do corpo e recuperar as forças e, em seguida, trocava toda a roupa molhada por uma muda de roupa seca antes de retornar para casa. O problema é que tudo isto era feito em público, sem qualquer pudor. Incapaz de processar esta situação na minha cabeça (como encarar mais tarde no trabalho os mesmos colegas que te viram nua em pelo ?), resolvi esquecer por um tempo da minha paixão pelo trekking. Os poucos franceses com quem comentei sobre o meu dilema, se mostraram incrédulos. “Mas vocês vão à praia cobertos apenas por um biquini microscópico!”. Mas o que eles não entendem é que para o brasileiro comum é impensável tirar este biquini em público, por menor que ele seja.


Ao viajar pelo Oriente Médio me deparei com novas surpresas. Acostumada com os corpos nus mal cobertos por biquinis fio-dental nas areias de Copacabana, descobri que as muçulmanas não apenas vestem suas burkas negras para andar na rua, mas também para tomar banhos de mar. Assim sendo, no dia que viajei a trabalho para Oman, coloquei na mala uma calça e blusa de neoprene, destas que os surfistas usam dentro d’água. Com estas roupas considerei que estaria razoavelmente coberta, de modo a não chocar  os auxiliares muçulmanos que nos acompanhavam na expedição, pois a viagem incluía um mergulho submarino para o estudo de bancos de coral. Os auxiliares, no entanto, já estavam bem acostumados com os hábitos exóticos dos ocidentais e não deram qualquer atenção a mim ou às minhas colegas mais jovens, que, indiferentes à cultura local, mergulharam de biquini. À tardinha, após voltar ao hotel e tomar um banho, todas nós saímos novamente para passear pelo calçadão da praia onde estávamos hospedadas. Minhas colegas, todas jovens, bonitas, vestindo shorts curtos e barulhentas como um típico grupo de turistas brasileiro, ficaram embasbacadas quando foram solenemente ignoradas por um passante que quase quebrou o pescoço ao virar-se para admirar uma muçulmana toda coberta por uma elegante burka negra barrada de rosa choque.


Conhecer outras culturas me mostrou que o conceito de certo e errado, tão arraigado em cada um de nós, deve ser sempre questionado, pois ele muda de uma cultura para outra. O que é mais importante é saber o que te deixa confortável e não agride os que te cercam.

Voltar

Tags: preconceitomuçulmanosnudezfrancesesbrasileirosoman

Receba os novos contos
em primeira mão