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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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As agruras de uma viciada em dopamina

mulher escala a pedra do baú, em Campos do Jordão, quando vê uma freira subindo ao seu lado, seguida de um grupo de crianças

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Vera ia subindo lentamente os degraus feitos de um pedaço de vergalhão moldado em forma de U e incrustado na rocha. O que era para ser uma pequena escalada coroada pela chegada ao cume da Pedra do Baú e um belíssimo pôr-do-sol, acabou se tornando um perigo. Ela analisava os degraus um a um, tentando avaliar a probabilidade de um deles não aguentar o seu peso. Todo aquele cálculo visava evitar ao máximo um confronto com Carlos, afinal estas fases em que os dois estavam juntos novamente e em paz eram sempre tão frágeis! Qualquer pequeno problema poderia botar tudo a perder. Imagine então se opor a continuar a subida por um motivo tolo como esse!

 Da última vez em que Vera e Carlos se separaram, a paz tinha sido rompida quando ele convidou seus amigos para irem terminar a noite no apartamento dela. Aqueles mesmos amigos que mal haviam se dado ao trabalho de memorizar o nome dela e a tratavam como um apêndice incômodo de Carlos. Ela era apenas bem-vinda na hora de dividir as contas da noitada. Mas Carlos era um sujeito sociável cheio de conhecidos, que amava viver na rua, cercado de gente. Para ele, ficar na tranquilidade da sua casa ou fazer um programinha a dois não era opção, era falta de opção.

 Naquela sexta-feira em que eles tiveram sua última briga, Vera estava exausta. A semana tinha sido cansativa, cheia de problemas. Ela passara os dias fazendo uma contagem retroativa do tempo que faltava para o fim de semana. Seu desejo naquele dia era deitar-se no sofá, jogar os pés para o alto e assistir a uma série inteirinha da Netflix, se levantando apenas para se servir de mais uma taça de vinho. Mas daí Carlos chegou em casa com os ingressos para irem assistir ao show de Belo... 

 O Carlos bem sabia que ela não ligava para pagode. Porém os ingressos tinham caído do céu! Eles tinham sido comprados por um casal de conhecidos que tinha desistido de ir ao show na última hora. Carlos dizia que seus conhecidos não deveriam perder o dinheiro que tinham gastado na compra dos ingressos, afinal de contas, os coitados estavam sempre tão duros... Vera deveria ser menos egoísta! Embora não tivesse a menor vontade, Vera foi ao show com Carlos e seus amigos. Era sempre a mesma coisa, e ela já estava habituada a isso: os problemas e desejos de qualquer um eram mais importantes para Carlos do que os problemas dela.

 Vera tinha dificuldade de se impor. Toda vez que ela sugeria algum programa diferente, suas sugestões não eram acatadas. Nos bons dias, ela era sutilmente ignorada e suas sugestões logo substituídas por qualquer outra idéia ‘genial’. Nos maus dias, aquele pequeno ato de rebelião dava origem a uma enfiada de acusações: mimada, esnobe, egoísta, que se encerravam por demonstrações de um mau-humor inabalável: Carlos fechava a cara e não havia cristão que o fizesse abrir a boca. O equilíbrio daquela relação era sempre tão precário! E ainda assim, Vera insistia na relação. “Porque será?”, se indagava ela.

 Desta última vez, eles haviam ficado separados por seis meses. Um dia ele finalmente aparecera em sua casa dizendo ter sonhado com ela. Seus sonhos eram premonitórios, sinais de um destino que deveria ser cumprido, e ele sempre os levava a sério.  Era hora de fazerem as pazes. Cordata, ela abriu a porta para mais uma temporada juntos. Quem sabe desta vez daria certo? 

 No primeiro fim de semana juntos, eles fizeram as malas e foram para Campos do Jordão. A viagem prometia ser boa. Iam sós, sem amigos inconvenientes ou brigas recentes. Campos do Jordão tinha tudo aquilo do qual os dois gostavam: muitos bares e restaurantes legais, e uma natureza exuberante ali pertinho. Além disso, era inverno e eles poderiam curtir um pouco de romance em frente à lareira.

 O sábado tinha sido divino. Eles tinham feita uma trilha fantástica pela mata da Serra da Mantiqueira. E quando Vera se jogou exausta na relva, Carlos encheu seu cabelo de florezinhas silvestres. Aqueles atos de carinho eram tão raros, que quando ocorriam ela se sentia como em um conto de fadas. Tudo era pura magia, inesquecível! 

 Àquela noite, eles tinham encontrado no restaurante um amigo de infância de Carlos, mas, ao invés de convidá-lo para se juntar a eles na mesa e passar a noite relembrando as aventuras do passado, Carlos tinha preferido preservar a intimidade recém-conquistada e ter um jantar tranquilo e à luz de velas com Vera. Nada poderia ser mais perfeito! Mas será que momentos como aquele compensavam a sucessão de altos e baixos da relação? Vera tinha visto um psicólogo declarar nas redes sociais que pessoas que viviam relações como essas eram, na verdade, viciadas na dopamina liberada pelo organismo nos momentos gratificantes que se seguiam às fases difíceis. Atualmente tudo era explicado pela dopamina...

 Até hoje, a barganha tinha parecido suportável. Na maior parte das vezes ela tinha tido apenas (apenas?) de renunciar aos seus desejos para satisfazer os desejos de um grupo de amigos, que, para dizer a verdade, nem eram amigos seus. Mas esta era a primeira vez em que ela sentia que estava colocando a sua vida em risco ao acatar as decisões de Carlos. Ao continuar subindo, ela tinha de lutar contra seus instintos. Aqueles degraus, após anos de exposição às intempéries, estavam enferrujados. Alguns já tinham sido completamente corroídos pela ferrugem, enquanto outros ainda estavam presos à rocha por apenas um de seus lados e oscilavam quando Vera apoiava o pé sobre eles.

 Vera ia escalando o rochedo lentamente, com os seus pensamentos perdidos em um mundo de analogias entre sua relação amorosa e aqueles vergalhões enferrujados, quando ouviu um barulho de vela de barco batendo ao vento. Quando ela se virou, viu, a sua direita, uma freira que vinha escalando o mesmo rochedo um pouco abaixo, o hábito sacudido pelo forte vento do final da tarde. Era uma freira jovem, de rosto corado e suado, com braços musculosos que se agarravam aos ganchos de ferro presos na rocha. Ela havia feito uma parada para descansar e olhava atenta o grupo de crianças que a seguiam na escalada. Naquela etapa, em que a face da rocha se tornava mais íngreme, algumas haviam começado a choramingar, com medo de prosseguir. A freira então começou a cantar ‘Anjo da Guarda’, de Arnaldo Antunes. Ela cantava a plenos pulmões, agitando o véu preso a sua cabeça no ritmo de Carlinhos Brown. Após uns instantes de hesitação, a criançada toda caiu na gargalhada e se pôs a escalar com redobrada energia, enquanto fazia coro à freira. 

 Vera, que seguira aquela cena com os olhos, como que hipnotizada, tinha voltado automaticamente a subir os degraus, se sentindo envergonhada do seu medo. Mas a coragem durou pouco, pois ela logo se deparou com outro degrau em péssimo estado. Ela olhou para cima e viu Carlos, que já tinha atingido o cume da Pedra do Baú e agora espiava lá do alto, tentando entender por que ela ainda não havia chegado. Ela lhe deu um sorriso débil, meio sem vontade, e olhou para baixo estimando a distância do ponto em que estava à base do rochedo. Ficou ali parada uns instantes, aproveitando a vista e reunindo forças. Então, num muxoxo, fez sinal de adeus para Carlos e começou a descer os degraus em uma sequência de movimentos ágeis, com o coração leve. Era hora de retomar as rédeas de sua vida, afinal de contas, a vida é breve. 

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Tags: pedra do bauescaladafreira

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