Artista de circo também acredita em santo (Homem-Aranha, cap. 2)
Logo após Claudinha instalar o alarme nas portas e janelas da sua casa, as crianças da vizinha descobriram a novidade e, cada vez que voltavam da escola, davam murros na sua porta até o alarme disparar. Em pouco tempo seus vizinhos estavam revoltados com aquela barulheira diária e ameaçaram ligar para a polícia se algo não fosse feito. Entre reclamações dos vizinhos e conversas com a mãe das crianças, o tempo passou sem novidades.
Um dia, porém, quando chegava em casa à tardinha, de volta do trabalho, Claudinha viu de sua varanda um grupo de vizinhos reunidos lá embaixo no play. Eles examinavam atentamente a fachada do prédio e falavam baixo, com a cara assustada. Pelo interfone, o porteiro contou a Claudinha que um apartamento já tinha sido assaltado na madrugada anterior e o ladrão começava a invadir o apartamento de baixo pela porta da varanda, quando o cãozinho do dono percebeu que havia gente estranha dentro de casa e começou a latir. Os vizinhos agora tentavam entender por onde tinha subido, ou descido, o ladrão. Claudinha agora tinha certeza de não estar louca, como algumas pessoas tinham afirmado. Alguém tinha, sim, tentado entrar na sua casa. E isso não teria acontecido novamente no prédio, se o síndico tivesse dado a devida atenção a sua história, ao invés de ficar fazendo piadinhas machistas. Pelo menos agora ele tomava uma atitude, e mandava colocar alarme no playground do prédio.
Algum tempo depois, caminhando pelo Centro do Rio na hora do almoço, Claudinha viu o síndico do seu prédio na rua Gonçalves Dias, de bate-papo com uma prostituta de rua. “Filho da puta, metido a moralista...”, ela falou baixo, enquanto passava pela cena na calçada, olhando ele nos seus olhos.
Muitos meses mais tarde, sua amiga Zazel foi contratada como professora em uma escola de circo que trabalhava com crianças de comunidades carentes para tirá-las das ruas. Zazel, um dia, convidou Claudinha para assistir uma de suas aulas após o horário de trabalho. Sua amiga estava orgulhosa com o caráter social do trabalho que estava fazendo. O seu único desgosto eram as notas que começaram a sair nos jornais sobre as suspeitas da polícia de que adolescentes da favela que estavam fazendo o curso para artista de circo pudessem estar envolvidos em roubos a residências. Em vários destes roubos que estavam ocorrendo na zona sul do Rio, os ladrões aparentemente tinham habilidades de malabaristas.
Enquanto Zazel dava aula de malabares, Claudinha reparou num outro grupo de alunos, que com verdadeiro olhar de veneração, acompanhava todos os gestos do seu professor. Um rapaz novo, musculoso, de cabelo dourado de sol, verdadeiro garoto propaganda da Zona Sul do Rio, mostrava como andar de trapézio e se lançar na rede de segurança sem se machucar. Em seguida ele mostrou aos alunos suas habilidades para escalar uma superfície vertical praticamente sem pontos de apoio. “Impressionante”, pensou ela, embora isto tenha lhe causado um leve frio na barriga.
Depois da aula, Claudinha e Zazel foram a um bar nas proximidades para tomar chopp e colocar a conversa em dia. “Que gato”, Claudinha comentou sobre o professor. “Ele foi meu colega no Colégio Santo Inácio. Cara estranho, parecia sempre meio revoltado. Nunca fui muito com a cara dele.”, disse Zazel, “Coincidência a gente se tornar professor aqui, não?”. Claudinha ia perguntar mais coisas sobre o professor, quando ambas foram surpreendidas pela chegada dele no bar. Logo, logo ele estava sentado tomando chopp com elas. Enquanto eles conversavam olho no olho, Claudinha reparava nas suas roupas. Tudo roupa de marca. O cara parecia um manequim. Logo ela se lembrou de que ele tinha estudado no Santo Inácio e que, portanto, devia ser de família cheia do dinheiro.
Os olhos dela vinham examinando carinhosamente cada centímetro exposto do corpo dele, quando ele puxou as mangas do seu moletom e Claudinha reparou na sua pulseira. Uma trancinha colorida com um santinho pendurado! “Que santo é esse?”, ela perguntou. “É Santa Catarina, a santa que protege de acidentes e de quedas dos trabalhadores da construção civil”. “Ah”, respondeu ela desanimada. Pouco depois, mal refeita da decepção, ela perguntou para Zazel se elas poderiam ir embora, pois tinha acordado cedo e estava muito cansada. O rapaz pareceu levemente contrariado pela falta de resultado de todo aquele charme que ele havia lançado.
Na rua, abraçada a sua amiga, Claudinha lhe contou um resumo da sua história, desde a ligação na madrugada da tentativa de assalto, até a descrição da pulseirinha do bandido. “Ai amiga, que decepção. Eu tenho pavor desses garotos de classe média, que combatem o tédio com adrenalina. Se eu não tivesse visto a pulseirinha do teu colega, não tinha suspeitado de nada. Com um pouco mais de papo, ele acabaria entrando com todas as honras pela porta da frente lá de casa. Não tinha necessidade de pular a janela do meu quarto!”.
Pouco tempo depois, ele acabou sendo descoberto de modo trágico. Em um dos assaltos, ele se assustou quando o dono da casa se acordou, e acabou despencando do sétimo andar. Parece que Santa Catarina não estava atenta naquele dia, e ele acabou saindo em duas seções diferentes da mesma edição do jornal: a de óbitos e a das crônicas policiais.
Fim da história
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