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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Alma muda

Santiago

Pela primeira vez desde que cheguei na Serra, o sol aparece e invade a sala de estar pela manhã. Com ele vêm as moscas, festejar a chegada tardia do verão. Minha cachorra se estende ao sol e esporadicamente abocanha uma das moscas que se aventura em suas proximidades. Mastigando de boca bem aberta enquanto me encara fixamente, ela come suas vítimas em sinal de protesto contra a dieta exclusiva de ração a que vem sendo submetida ultimamente.

Quando o zumbido das moscas se iniciou, me senti lançada à velocidade da luz para o norte da Espanha. Poucas vezes vi tantas moscas em minha vida como quando peregrinei pelos caminhos de Santiago de Compostela. Em cada bar e armazém que entrei durante minha peregrinação, vi papéis colantes cobertos de moscas pendurados no teto, dando ao local um estranho ar de decoração de festa junina. À minha frente agora imagino o sol filtrando por cortinas de franjas felpudas que protegem as portas abertas da invasão destas miseráveis criaturas indesejadas. Retidas do lado de fora, elas zumbem enlouquecidas, irresistivelmente atraídas pelo perfume dos pernis de presunto expostos nos comércios dos vilarejos.

De súbito me dou conta de que não é apenas o zumbido das moscas que me transporta para o Caminho, mas também este ar modorrento da Serra, onde a vida parece andar a passo lento. Não me entenda mal, longe de ser uma crítica, faço aqui um elogio. Nestes últimos tempos ando exaurida por tantas emoções no meu dia a dia. Hoje recebo de braços abertos este período de tempo dilatado que me faz lembrar de minha infância, quando passava horas a fio acompanhando o movimento do sol sobre o muro da casa, ao som do canto matinal das cigarras.

Não sei por quanto tempo resistirá esta vibe contemplativa, pois amanhã devo voltar para o corre-corre da cidade grande. Prevejo grandes emoções no meu retorno: no grupo de WhatsApp do condomínio li sobre o assassinato do Nego Jackson e a guerra que eclodiu entre duas facções criminosas, levando os moradores de Vila Jardim ao pânico. Enquanto a hora de voltar para casa não chega, aproveito os últimos instantes de silêncio e sossego escrevendo estas breves linhas na tentativa de romper o jejum de escrita que vem durando quase um mês. Quando a agitação é excessiva, a alma silencia à espera de que o corre-corre se acalme para que ela, enfim, volte a cantar.

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Tags: alma emudecidacansaçoinspiraçãomoscas

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