A Sobrevivente da Capela do Senhor da Pedra
São nove horas da manhã e o céu se tinge de cores incomuns para este horário. O mar está extraordinariamente tranquilo, quase parece um lago. Mais cedo a terra se convulsionou em fortes tremores, mas aqui, na capela à beira-mar onde moro, quase nada ocorreu, apenas umas rachaduras nas paredes de pedra e uns castiçais que tombaram do altar. A capela é robusta, graças ao Senhor.
Soube que em Lisboa, após os tremores de terra desta manhã, o fogo dos infernos veio punir aquela terra de pecadores. A raiva do Senhor não tem limites, atinge pobres e ricos indistintamente! Os habitantes de Lisboa hão de pagar com suas vidas por todas as sem-vergonhices da corte. Já nós daqui das cercanias de Porto somos tementes a Deus, nada de sério há de se passar conosco.
Hoje de manhã acordei com uma barulheira louca. Os cães latiam muito e ganiam, tentando se soltar de suas amarras. Os pássaros estavam algariados, voando em bandos em todas as direções. Graças ao Senhor que agora após o terremoto tudo está tranquilo, até mesmo tranquilo demais. Tanto silêncio me causa um arrepio. Mas o que é isso agora? O que se passa com este potro do vigário? Quando ele começa assim a empinar enlouquecido sobre suas patas traseiras, eu é que não chego perto. Cruz-credo! Ele bem que podia aproveitar essa maré seca para galopar pela areia se eu tivesse coragem de soltar seu cabresto. Mas essa coragem eu não tenho. Ai, meu Senhor, me perdoe, mas eu não tenho. O senhor foi testemunha daquele coice indevido que levei nos quartos e que quase me matou quando eu ainda era miúda.
Que estranho, que vibração no ar é esta? Esse frio que me invade até os ossos. Esse ronco profundo...será outro terremoto? Deixe-me ver lá fora. Meu Deus, é chegada a minha hora! E eu, aqui com os pés pregados ao chão, já não tenho mais energia para tentar fugir deste paredão de águas verdes que avança sobre mim. Se agarre com todas as suas forças, Maria da Luz!
Eu desperto assim, agarrada fortemente à beira da cama, enquanto ainda sinto um turbilhão de águas que me sacode de um lado para o outro, me leva ao fundo contra a areia e me faz subir novamente à superfície, sendo atingida o tempo todo por pedaços de madeira flutuantes, telhas e outros restos arrancados da capela. O ronco ensurdecedor das águas de súbito para. Era o barulho do aspirador de pó sendo usado na limpeza do quarto ao lado do meu. Abro os olhos e aqui estou, sã e salva. E seca.
Tomo café da manhã com minhas companheiras de viagem sem dizer uma só palavra, Tento inutilmente me livrar da sensação desagradável de me afogar em um mar revolto que o sonho me deixou. Quando afinal a minha atenção se volta para Alda, sentada à minha frente, escuto ela comentando sobre a programação de hoje. Vamos com nossa amiga Marisa conhecer Vila Nova de Gaia, nos arrabaldes de Porto.
Pouco depois do café, Marisa nos pegou no hotel e chegamos rápido ao vilarejo, que é uma graça. Deve ser bom morar aqui, longe da agitação e da invasão por turistas que castiga o Porto o ano inteiro. Estranho, me sinto em casa. Sou capaz de jurar que para lá tem uma igreja, digo para mim mesma rindo de olhos fechados enquanto giro sobre meus pés. Quando afinal paro e abro os olhos, vejo à minha frente, uma capela hexagonal que repousa temerária sobre um rochedo baixo à beira-mar, a Capela do Senhor da Pedra. Um mal-estar me invade e me tira o equilíbrio, fazendo com que eu me agarre ao braço de minha amiga Alda, que me olha desconfiada. “Que lindo!”, eu comento com ela, tentando disfarçar o redemoinho de águas que me segue desde os sonhos. “Vamos visitar a capela?”.
A capela que está à minha frente, eu descubro em um folheto turístico que carrego comigo, foi construída poucos anos após o terremoto de Lisboa de 1755, quando a região toda foi invadida por um tsunami. Aquele rochedo sempre foi um lugar sagrado, e o templo pagão que havia no local acabou sendo substituído pela atual igreja católica. Entramos na capela e somos todas atraídas pela beleza do altar barroco, todo revestido de ouro. Com meu smartphone em mãos, tento fotografar o altar e os retábulos, contudo na sua tela aparece um clarão de luz verde tremeluzente. Não consigo fotografar. Procuro em vão pela lampa fluorescente instalada no altar que poderia estar provocando este fenômeno. Não vejo nada. Minhas amigas, tiram várias fotos do interior da igreja, sem perceber o que se passa comigo. Decido então fotografar o lado de fora e me dou conta de que no exterior minha câmara funciona normalmente. Teimosa, tento outra vez fotografar o altar. Nada. Finalmente desisto. Mais tarde eu copio as fotos de uma das minhas amigas...
Com os braços apoiados na amurada que cerca a capela, admiro o mar de ondas muito verdes e transparentes, que se agita tranquilo nesta tarde de sol. Uma sensação de paz me invade e expulsa os últimos rodamoinhos de água do mar que ainda restavam de meus sonhos. Coisa estranha este universo, cheio de mistérios. Será que um dia a gente vai conseguir desvendá-los?
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