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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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A Redescoberta do Éden - Ana Clara cura as mágoas no Carnaval (cap. 3)

grupo de mulheres em um desfile de carnaval nas ruas do Rio em 1937

Este é o terceiro capítulo de "A Redescoberta do Éden". Para ler o primeiro capítulo, clique aqui.

Dia 8: 

Hoje o Nanico voltou aqui em casa. Desta vez, ele trouxe embaixo do braço um álbum de fotografias onde há várias fotos de Arthur com Gracinda, uma mulata jovem e muito bonita, vestida de modo muito sedutor. Ele trouxe também a certidão de óbito de Arthur, que morreu muito jovem, aos vinte e sete anos. Ele foi assassinado em uma briga de bar, defendendo a honra de Gracinda, que havia sido ofendida por um freguês bêbado.

 Nanico disse que, após a morte de seu avô Arthur, Josefa resolveu deixar o trabalho de doméstica para ir ajudar Gracinda na criação de sua filha. Elas moravam no Morro dos Prazeres, em uma comunidade que se formou quando o prefeito decidiu implantar um Plano de Remodelação Urbana no Rio de janeiro, para retirar as favelas do centro do Rio. É nesta casa que Nanico vive até hoje. Mãe, nós temos um parente que é rei Momo e vive na favela! 

 Dia 9

Hoje, remexendo em umas caixas de livros e de material didático, eu encontrei um diário de Ana Clara, a irmã mais velha da vó. Quando sua mãe deixou de viver aqui no Rio, Ana Clara já tinha 22 anos. Ela resolveu continuar morando nesta casa na companhia de seu tio e de Josefa. Ela era uma moça inteligente e pouco convencional. Traumatizada pela violência de seu pai, ela preferia a companhia exclusiva das mulheres e acabou ficando solteira por toda a sua vida. Pouco após a partida de sua mãe, ela começou a trabalhar como professora primária.

 Pouco após a última visita de seu pai em 1940, quando ela finalmente conquistou sua liberdade, Ana Clara relata ter tido uma decepção amorosa, quando sua namorada Aurora a trocou por outra jovem do meio boêmio literário e dinâmico da Montmartre Carioca, como era chamada a Lapa àquela época. Como consequência, ela entrou em um período de depressão, o que deixou seu tio preocupado. Seu “comportamento sexual desviante, suas anormalidades afetivas e volitivas”, além de sua instrução “em demasia” fizeram com que o médico diagnosticasse sintomas de uma doença mental e sugerisse ao seu tio que a internasse em um asilo. Ela, contudo, relata ter-se recuperado no Carnaval daquele ano cantando à exaustão a marchinha Aurora:

 Se você fosse sincera

Ô ô ô ô Aurora

Veja só que bom que era

Ô ô ô ô Aurora

 Pouco tempo depois ela voltaria com redobrada energia a participar das rodas de samba, também frequentadas por Aracy de Almeida e Mario Lago, e a visitar Portinari, em seu sobrado na rua Joaquim Silva. Ela conta em seu diário que fazia parte de um grupo de moças ousadas, conhecidas como “as modernistas”.

 Dia 10

Ana Clara morreu em 1995, aos 77 anos. Pouco anos de falecer, ela transferiu as contas de água e luz da casa para o nome de sua irmã caçula. Todos os bens que ela adquiriu com o seu trabalho de professora, ela deixou de herança para o sr. João Batista, um pedreiro que havia se tornado seu amigo ao longo dos anos e cujos filhos ela vira crescer e se tornarem pais de família. Em troca dos bens, ele aceitou o compromisso de manter a casa bem conservada, à espera de que um dia aparecesse algum parente aí do Sul para tomar posse da casa e dos móveis que há dentro.

 Sobre a mesa da sala de jantar, eu achei uma caixa de madeira onde há uma foto com dedicatória e uma carta, endereçada à vó Bruna. Na foto ela aparece muito risonha vestindo uma calça comprida de helanca branca e uma blusa justa sem mangas. Ela devia ter uns 45 anos àquela época. Ela está nesta mesma sala onde estou agora, mas as janelas estão todas abertas. O sol invade a peça, formando uma poça de luz sobre a mesa de jacarandá. Josefa, pouca coisa mais jovem, está ao seu lado, com um espanador de plumas em sua mão, olhando para o fotógrafo. Ana Clara segura o braço de uma imensa enceradeira colocada sobre a mesa de jacarandá para dar polimento à madeira, rindo da situação inusitada. A enceradeira é uma destas que se utilizava antigamente para dar lustro no chão, nos dias em que ele era encerado. Na dedicatória da foto está escrito “Estamos deixando a casa toda limpa e brilhante à espera da visita da nossa querida Bruna. Com carinho, da sua irmã Ana Clara. Maio de 1963.”

 Caramba, mãe, a carta nunca foi lida! O envelope continua fechado. Estou voltando para casa amanhã e vou levar esta carta comigo, para você ver o que há nela. Até amanhã!

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Tags: Auroraas modernistas

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