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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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A onda

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Desde minha tenra infância o mar me impõe respeito. Ainda mais agora, que ele cresce à olhos vistos, como um adolescente rebelde. Passou de uma criança brincalhona e arteira a um jovem revoltado. Submerge ilhas, invade cidades, e destrói regiões inteiras da costa quando dominado pelo impulso destrutivo de uma onda gigante.

Em meu passado, fui inúmeras vezes assombrada por um sonho recorrente do fim dos tempos: na aurora do dia seguinte a um maremoto de amplitude continental, eu e os demais sobreviventes nos reuníamos à beira-mar sob um céu encoberto pela bruma. Ali, dispersos na areia batida da praia, nos detínhamos hipnotizados pela aparente tranquilidade de um mar verde amarelado, recoberto por uma fina espuma branca. Debilitado pelo seu arroubo da noite anterior, o mar se esvaía tranquilo. Mal sobrava energia para formar remansos nos baixios da costa. Mas ao nosso redor, fogões, tábuas e móveis quebrados deixados pelo refluxo do tsunami testemunhavam seu ataque de fúria recente.

Cresci tentando perder esse medo do mar. Já me aproximava dos 30 anos quando embarquei em uma escuna para Abrolhos, no sul da Bahia. Em uma das paradas que o barco fez em alto-mar para que os mergulhadores a bordo pudessem explorar um navio naufragado que repousava tranquilo no fundo do mar, resolvi me submeter a um tratamento de choque. Vesti a máscara, o snorquel e os pés de pato e me joguei ao mar, sonhando com as aventuras que contaria ao retornar de minha viagem. Fui subitamente acordada de meu devaneio ao me dar conta de que o snorquel em um mar revolto não é de grande ajuda. A água salgada invadia aquele maldito canudo, me impedindo de respirar, e as ondas me chacoalhavam de um lado para o outro, sem que eu conseguisse dominar a situação. Orgulhosa, não pedi ajuda aos mergulhadores que, munidos de garrafa de oxigênio, nadavam tranquilos ao meu redor admirando os escombros do navio. Minutos mais tarde consegui voltar ao barco e, entre golfadas ansiosas por ar, me acalmei. Tinha escapado do fim de meu pequeno mundo por pouco.

O desfile de Sete de Setembro que hoje assisti à poucos metros da praia, sob um céu esbranquiçado pela fumaça, me trouxe à lembrança estas memórias de fim de mundo. De pé na calçada da rua principal de um balneário, eu admirava distraída o desfile de alunos das escolas locais ao som de uma batucada animada, que mais parecia a de uma escola de samba. Todos descontraídos e alegres, fazendo a felicidade de suas mães e avós, que seguiam o desfile atentas. Foi então que os batuqueiros se detiveram e se abriu uma clareira na avenida. 

Após algum tempo de espera, o batuque de tambor recomeçou em um compasso sóbrio e ensurdecedor, lembrando as batidas do coração: tum-tum, tum-tum. Ao invés dos grupos descontraídos de antes, a avenida foi invadida por um mar de jovens empertigados em seus uniformes engomados. Vestidos com camisa preta, shorts pretos e quepe da mesma cor, portando lenços amarelos no pescoço amarrados como uma gravatinha, eles marchavam segurando estandartes pretos com a estrela de Davi onde anunciavam estar desenvolvendo o caráter de Cristo. Em sua página na internet, eles aparecem vestidos com camisetas multicores, e dizem prestar serviço voluntário, além de lutar por uma sociedade sadia. Seus valores são anunciados pelo o uso de palavras emblemáticas, porém de sentido obscuro, sem explicações. Mas o que eu via à minha frente naquela parada refletia uma mudança de tom: os jovens vinham vestidos de preto, com aspecto militar e semblante agressivo. Diante da cena me senti invadida por uma onda de sensações desagradáveis. Arrepiada dos pés à cabeça e levemente nauseada, me lembrei daqueles outros jovens que há 90 anos desfilavam com suas camisas pardas em nome de valores obtusos. Ainda que derrotados ao final da II WW, eles deixariam em sua esteira um mar de destruição.

Há ondas que deveriam ser encaradas por todos nós como um tsunami. Ainda que se formem discretamente do outro lado do oceano, elas crescem de modo inexorável até rebentar na nossa costa. Não se deve restar impassível, rezando pela sua mudança de curso, pois rezar não basta para refrear o seu avanço.

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Tags: medo do martsunamiextrema direita

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