Loading...

Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

Blog

Veja nossas postagens

A história curiosa do placebo

O uso do placebo é hoje essencial para avaliar a eficácia de qualquer novo medicamento que seja desenvolvido pela indústria farmacêutica. Contudo, as origens de seu uso datam do final do século XVI, quando uma comissão de médicos e padres foi chamada pelo rei Henrique IV para elucidar a veracidade de um caso de possessão demoníaca que ameaçava a estabilidade política do império francês.

exorcismo

Placebo é qualquer substância sem efeito farmacológico, que não exerce efeito físico sobre o paciente, tal como os comprimidos de lactose, açúcar ou farinha dados a um subgrupo de pacientes durante os testes controlados de remédios. Seu uso visa avaliar a diferença na eficácia entre os dois grupos testados: aqueles que são tratados com placebo e os que recebem a nova substância medicinal. Contudo, apesar de esses comprimidos não terem efeito físico, eles podem ter um efeito psicossomático importante.

Durante a segunda guerra mundial, em um período que houve grande escassez de recursos para tratar os feridos em campo de batalha, o Dr. Beecher observou que o percentual de pacientes que pediam remédios para a dor era menor do que o observado entre civis nos tempos de paz. Ele então resolveu tratar parte dos feridos injetando uma solução salina, ao invés da morfina. Ele observou que 40 % destes pacientes que recebiam a solução salina relatavam um alívio na dor, o que foi atribuído ao efeito psicossomático.

Observações sobre o efeito psicossomático foram relatadas pela primeira vez no final do século XVI. Àquela época, o equilíbrio político da monarquia francesa estave profundamente abalado por disputas entre a Igreja Católica e a Igreja Protestante. No intuito de apaziguar as tensões, o rei Henrique IV decidiu converter-se ao catolicismo, tornando-se um líder importante durante as Guerras de Religião no país. É dele a frase célebre "Paris vaut bien une messe" ("Paris vale bem uma missa"). 

A atenção que o público dedicava à Marthe Brossier, uma jovem católica que dizia estar possuída pelo demônio, exacerbou ainda mais os ânimos durante essa disputa religiosa. Ela viajava de vilarejo em vilarejo, atraindo a atenção de grandes audiências às suas sessões públicas de exorcismo. Durante estas sessões ela apresentava um comportamento chocante que incluía convulsões violentas, falas em línguas estranhas e insultos a figuras religiosas, e acusava os protestantes de pertencerem a Satã. 

Suspeitando da veracidade das crises de Marthe, o rei ordenou que se formasse uma comissão de médicos e clérigos para avaliar se ela estava realmente possuída pelo demônio, ou se estava apenas fingindo. Durante os 40 dias em que foi examinada, ela foi exposta a uma série de objetos religiosos genuínos e a outros falsificados. Eles partiam da premissa de que o diabo não suporta o contato com objetos religiosos genuínos, que lhe causam forte dor e o forçam a abandonar o corpo da pessoa possuída.

Porém, nas ocasiões em que Marthe foi apresentada a garrafinhas contendo água da bica, ao invés de água benta, e pedaços de pão, ao invés de hóstias consagradas, ela reagiu tão violentamente quanto ao ser apresentada a objetos consagrados.

O teste definitivo foi feito pelo Bispo quando este utilizou uma chave de ferro comum envolta em tafetá dizendo tratar-se de um pedaço da cruz em que Cristo fora crucificado. Ao iniciar a sessão de exorcismo rezando em latim “Arma, virumque cano”, ela caiu por terra e começou a contorcer-se selvagemente.

O bispo, porém, havia se utilizado de uma astúcia. Ele havia iniciado o exorcismo com o primeiro verso em latim do poema épico Eneida, de Virgílio. Deste modo a comissão comprovou que as reações de Marthe dependiam daquilo em que Marthe acreditava, e não da realidade. Esta investigação ajudou a reforçar a postura mais racional e científica que começava a emergir na França, combinada a um ceticismo crescente sobre os fenômenos sobrenaturais.

No fundo, a linha entre o real e o imaginário é bem mais tênue do que gostaríamos de crer. Quantas vezes nós, como Marthe, somos vítimas de nossas crenças? Adoecemos devido a crises emocionais, e confiamos nossa cura a milagres embalados pela propaganda enganosa. Se um simples placebo pode mover montanhas dentro de nós, que dirá o que podemos alcançar com a fé sincera de que o amanhã será melhor? 

Voltar

Tags: placeboexorcismoHenrique IVMarthe Brossier

Receba os novos contos
em primeira mão