A difícil espera (Brava Gente Açoriana III)
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No primeiro dia em que Francisco acordou no Desterro, ele custou a crer que algo havia mudado na sua vida. Os móveis do seu quarto e os lençóis de linho bordados à mão eram quase iguais aos da casa de seus pais; a visão do mar refletindo o sol à perder de vista era idêntica à que ele tinha da janela do seu quarto em Picos. Do outro lado da porta, vinha uma conversa entre duas mulheres com a cadência da fala dos Açorianos e , por um instante ele pensou em no que sua mãe e irmã deveriam estar fazendo a esta hora. “É hora de levantar e desbravar o mundo”, ele decidiu, antes que a saudade de casa fosse forte demais.
Quando Francisco chegou à sala de jantar, ele viu que a família já estava sentada à mesa, comendo o pequeno almoço. Após as apresentações de praxe e as perguntas sobre sua viagem, Antônio Ferreira de Melo comentou que ele teve muita sorte, pois o boato sobre as tripulações que afundavam seus navios para roubar os pertences dos passageiros era verdadeira. “Que selvageria”, Francisco respondeu sem conseguir tirar os olhos da comida, “se isto tivesse ocorrido, o butim seria minúsculo pois quase todos os passageiros do navio eram colonos miseráveis de Picos”. A família observou divertida a avidez com que Francisco admirava a comida abundante e cheirosa colocada sobre a mesa, sem ter coragem de tocar nela enquanto conversam, para não parecer indelicado com seus anfitriões. A dona da casa ordenou então à escrava que preparasse uma gemada com vinho do porto “para dar forças ao gajo”. “Alimente-se bem, Francisco, pois mais tarde vou te apresentar aos representantes locais da coroa para sabermos quando você receberá as tão esperadas terras a que tem direito”, lhe disse Don Antônio.
Francisco foi apresentado às gentes do lugar, todos imigrantes como ele. Todos o tratavam com respeito e consideração. Mesmo os homens de maior importância na colônia o recebiam com tapas nas costas e apertos enérgicos de mão. Aos poucos, ele sentia nascer em si outro homem, desinibido, importante. Seus pensamentos, sempre tão bem guardados lá em sua terra natal, agora jorravam pela boca. Esta mudança para os trópicos havia lhe trazido nova vida. Lá em sua casa nos Açores, ninguém esperava que ele realizasse algo importante. Ele vivia à sombra de seu irmão mais velho, feito erva-daninha, pronto para ser arrancado do convívio familiar no dia em que seu pai morresse e todas as posses dele fossem herdadas pelo seu irmão. Agora, Francisco via se abrir um mundo de possibilidades: aqui ele era respeitado, alguém de valor. E, certamente, enriqueceria.
Alda Maria, a filha de Don Antônio, estava sentada junto à janela da sala bordando mais uma toalha para o seu enxoval quando Francisco voltou do circuito de apresentações à governança do Desterro. O rapaz vinha tão entusiasmado e cheio de planos para o seu futuro, que ele mal viu a moça. Ele só tinha olhos para Don Antônio, com quem falava muito e rápido, trocando de um assunto para o outro sem que o seu anfitrião fosse capaz de acompanhar seu discurso. “Venha, rapaz, vamos relaxar um pouco e beber um vinho enquanto a janta não fica pronta. Estou contente de ver que você está tão animado. Precisamos de gente assim aqui no Desterro, gente com energia para realizar mudanças! Alda Maria, minha filha, junte-se a nós para nos contar as novidades da sociedade local”. Seu pai a chamava com a intenção de aproximar sua filha deste rapaz que parece ser um bom partido, filho de boa família e com um futuro brilhante pela frente.
Alda Maria mal havia começado a falar, quando reparou que o rapaz se impacientava na sua cadeira, como se tivesse sido interrompido abruptamente antes de esgotar todos os assuntos que lhe interessavam. Ele dedicou apenas um olhar rápido e polido à ela, antes de iniciar a degustação do vinho, que parece despertar-lhe maior interesse do que as novidades da colônia. A moça se sentiu tão perturbada pela falta de interesse dele, que tudo o que saía da sua boca eram pequenas histórias sem interesse, contadas de modo quase inaudível. Nem mesmo seu pai parecia estar lhe dando atenção hoje. Ela, que era uma jovem muito bonita, filha de família rica e importante, estava acostumada a ser sempre o centro das atenções por onde passava. Espantada e com o orgulho ferido, ela percebia instintivamente que o rapaz à sua frente não lhe dava valor, nem era o homem certo para ela. Mas toda aquela energia dele lhe criava uma aura irresistível! Os outros, aqueles que a cortejavam durante as visitas que faziam de casa em casa durante a hora do chá, lhe causavam tédio. Não havia novidades nem promessas de aventuras em seus olhares sedutores, seus rapapés ou mesmo nas palavras ocas ditas por eles ao pé do ouvido. Por trás das suas fitas e rendas, e do seu olhar recatado, existia uma jovem de forte imaginação e rebeldia nata, que ela era exímia em esconder.
Já se passara quase um ano desde que Francisco havia chegado ao Desterro e ele ainda não havia recebido suas terras. A governança local não havia sido provisionada pela coroa com o dinheiro necessário para comprar os mantimentos e os apetrechos para trabalhar as terras que seriam entregues aos colonos. Além disto as terras prometidas pelo rei aos colonos portugueses faziam parte de estâncias que já possuíam proprietários. Os governantes locais reclamavam que o rei não dava atenção suficiente aos seus súditos e aos problemas das colônias, esperando que as coisas se arranjassem sozinhas, o que vinha causando grande insatisfação no Desterro. Neste meio tempo, Francisco tinha visto a sua energia se esmorecer pouco a pouco. Quase nada dela restava. Ele, que não levava jeito para ocupar posições nas câmaras ou nas milícias locais, passava os dias bebendo no armazém em frente à casa de Don Antônio. Ele havia desenvolvido um gosto todo particular por uma cachaça azulada produzida nos alambiques locais.
Don Antônio, que antes admirava o rapaz pelas suas ambições, agora se preocupava vendo-o neste estado lastimável. “Resolvam logo o problema deste rapaz. Achem uma terra para ele se ocupar, senão ele vai acabar se tornando um problema de todos nós aqui no Desterro”. Don Antônio tanto falou com as autoridades locais que, após um ano e meio de espera, Francisco finalmente recebia o termo de propriedade da terra, as ferramentas, as sacas de sementes e as doze cabeças de gado a que tinha direito. Porém os demais colonos que haviam chegado com ele no mesmo navio ainda continuariam aguardando que o rei cumprisse as suas promessas durante um bom tempo. No dia em que Francisco chegou em casa com os documentos da sua terra, Alda Maria viu renascer aquele rapaz cheio de energia e planos para o futuro que ela havia conhecido. A passagem dele pela casa parecia a de um furacão, o que fez rir as mulheres e as escravas, que se puserem a reunir seus pertences em novas trouxas. Sua partida era iminente, não havia tempo para mais adiamentos.
Na noite anterior à sua partida, já um pouco tonto devido às inúmeras taças de vinho que ele havia consumido durante o pequeno evento de despedida que prepararam para ele na colônia, ele abraçou de súbito Alda Maria no jardim e se declarou a ela. “Tão logo a minha nova casa esteja construída e a terra produzindo, eu venho buscá-la para morar comigo. Você aceita ser minha esposa?” Sem qualquer tipo de reação ela ficou ali parada, de boca aberta, olhando para ele encabulada. De onde tinha saído aquela proposta? Ele nunca tinha tentado seduzí-la desde que a conhecera. Na verdade, ela ainda se sentia ignorada por ele depois de todo este tempo de convivência em sua casa. Mas ele era tão lindo assim com o rosto afogueado e os olhos brilhantes! E essas mãos que lhe seguravam sua cintura com dedos de proprietário... Meu Deus!
Na manhã seguinte bem cedo ele partia para a terra prometida, levando consigo um escravo cedido por Don Antônio. As doze cabeças de gado iam sendo conduzidas no caminho de terra, ao lado da carreta de boi, onde Francisco ia mal acomodado sobre as suas trouxas. Mas nem o incômodo, nem a viagem arrastada o perturbavam. Ele ia sonhando de olhos abertos com a sua nova casa, cercada por um campo de trigo, milho e um parreiral. As crianças corriam pelo pátio, enquanto Alda Maria gritava com elas para que se comportassem. “Que imagem linda!”, ele disse logo após um longo suspiro. O escravo, indiferente aos devaneios do seu novo senhor, mal colocara os pés na estrada e já vinha atacado por uma crise de banzo, saudoso da sua família que ficara para trás.
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