A dieta macrobiótica e os raios cósmicos
Escondida lá no fundo do andar térreo de um prédio decrépito da rua Mal. Floriano ficava a Associação Macrobiótica de Porto Alegre, a mais antiga da América do Sul. Durante algum tempo fui cliente convicta do seu restaurante, onde almoçava pelo menos três vezes por semana. Arroz integral, feijão azuki, abóbora Hokkaido, vegetais cozidos, sopinha de feijão com macarrão e legumes, tudo temperado com raiz de bardana, gersal, e molho de soja. De sobremesa, maçãs e ameixas cozidas ou gelatina de agar-agar. Alimento cru, nem pensar, bem como tomates, beringela e batata inglesa, todos demasiados yins.
Já não me recordo quem me levou ao restaurante pela primeira vez, mas logo fui tomando gosto e fazendo novos amigos, com quem compartilhava silenciosamente a mesa, enquanto mastigávamos incansavelmente nossas colheradas de arroz. Vez ou outra me aventurava a cozinhar meu próprio almoço, seguindo escrupulosamente as receitas de um livrinho que havia comprado naquela época, e que apenas na minha última mudança se perdeu.
Certo dia, recebi um convite para encontrar meus conhecidos em uma festa na casa de Marcinha, a garota mais popular do grupo. Passei os dias que antecederam a festa imaginando como seria a casa dela, uma macrobiótica convicta e panfletária. Eu imaginava uma cozinha de estilo hippie dos anos 70, recheada de ervas secando junto ao teto e potes de vidro cheios de grãos e frutas secas, além de prateleiras onde louças desparelhadas se empilhavam lado a lado com livros de receitas macrobióticas. Pela sala eu antevia almofadas indianas espalhadas sobre colchões junto ao chão e palitos de incenso queimando em cada canto. Mas quando cheguei na casa dela, reparei decepcionada que o décor era moderno e sóbrio, e o buffet sobre a mesa de jantar havia sido contratado. Marcinha morava com os pais. Naquele momento me dei conta de que os macrobióticos eram, sim, gente como a gente, e eu podia enfim relaxar e me sentir parte do grupo.
Ainda junto à porta de entrada, fui virando o rosto lentamente à medida que reconhecia meu grupo de amigos, todos eles trajados em uma versão sport chic de suas vestimentas diárias. Havia, no entanto, uma figura exótica que auxiliava Marcinha a fazer as honras da casa. “É meu irmão”, disse ela sorrindo, enquanto estendia o braço para este rapaz de chapéu coco no alto do qual uma hélice girava sem parar. “É para capturar a energia cósmica”, ele comentou muito sério. Seus óculos, ao invés de lentes, tinham uma grade bem fininha, para forçar a vista a olhar à frente e ao longe, e assim combater a miopia. Eu me lembrava de já ter visto propaganda destes óculos nas revistas voltadas aos adeptos do vegetarianismo e de terapias alternativas.
Nos anos que se seguiram, minha dieta macrobiótica evoluiu para uma dieta lacto-ovo-vegetariana e assim permaneceu por mais de vinte anos, até o dia em que fiz duas novas descobertas. Ao fazer o exame anual de saúde, o médico me disse que o teor de zinco do meu sangue estava baixo e eu deveria voltar a comer carne para repô-lo. “A dieta vegetariana não serve para todos”, me disse ele. Além do ‘vegetariano’, tive de retirar o prefixo ‘lacto’ da minha dieta: eu acabava de descobrir que tinha intolerância ao leite. Restava o ‘ovo’. Mas este, você bem sabe, permaneceu banido das dietas saudáveis até bem poucos anos atrás.
Pouco após ter voltado a viver em Porto Alegre, resolvi ir ao Centro da cidade para matar as saudades da Associação Macrobiótica. Tirei anéis correntes e brincos, e removi os cartões da carteira, troquei minha bolsa do dia a dia por uma pequena bolsa à bandoleira e saí de casa sob uma chuva de conselhos de minha mãe. “Te cuida. O Centro hoje em dia é muito perigoso, cheio de trombadinhas! Não te desgruda da tua bolsa”. Quando afinal cheguei na rua Marechal Floriano, dei com a cara na porta. A Associação se mudou de lá para o bairro Lageado há muitos anos e recentemente faliu, perdendo a sua sede. Fiquei triste ao saber disto, pois com a sede da Associação se foi toda uma etapa da minha vida. Restaram apenas as lembranças. Onde andarão Marcinha, seu irmão e meus demais companheiros de garfo?
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